“Não foi por ter faltado pedra que se acabou a Idade da Pedra e não será por faltar petróleo que há de ter fim a Era do Petróleo”, declarou uma vez o xeque Yamani. Ele queria dizer que seriam razões econômicas e tecnológicas, e não a escassez, que poriam fim, algum dia, ao reino do petróleo.
Era início dos anos 70, quando o Clube de Roma profetizava em “Os Limites do Crescimento” que os 500 bilhões de barris existentes no subsolo estariam esgotados antes do término do século. As reservas provadas são hoje o dobro, 1 trilhão de barris, e, ao ritmo de consumo atual, durarão 36 anos, mesmo que não haja descobertas adicionais.
Nada disso serve de consolo aos automobilistas forçados a abandonar os carros nas estradas da França ou aos caminhoneiros que bloqueiam as refinarias para obrigar o governo a baixar o preço do combustível.
Terá afinal chegado o terceiro choque do petróleo? E, se não é isso, que nome merece o aumento que elevou o preço do barril de menos de US$ 10, no início de 1999, para US$ 25, no fim do ano, e mais de US$ 33, agora?
A causa imediata da elevação foi obviamente a decisão da Opep e dos outros produtores de reduzir a oferta de óleo em 6% (mais ou menos 4,7 milhões de barris diários) para reagir contra o colapso do preço em 1998, em seguida à crise asiática. Ao chegar a US$ 10 o barril, o petróleo estava custando um quinto apenas do valor médio de 20 anos atrás, em termos corrigidos do dólar de 1974. A redução da oferta coincidiu com a súbita recuperação das economias asiáticas e a continuação da acelerada expansão americana, combinação explosiva que arremessou o preço aos níveis atuais (ainda inferiores aos vigentes entre 1974 e 1975, se levada em conta a inflação).
É grande a incerteza sobre o que vai acontecer, mesmo que a Opep resolva neste domingo ampliar a oferta porque: 1º) o inverno se aproxima no hemisfério Norte; 2º) os estoques americanos estão no nível mais baixo em 24 anos; 3º) as refinarias nos EUA se encontram próximas do limite; 4º) a frota petroleira estaria operando a 97% da capacidade; 5º) o temor psicológico de desabamento do preço no futuro tem inibido compras para estoque.
Apesar dos protestos, pouca gente sabe que, nos países ricos, os impostos e taxas do governo representam quase dois terços do preço final do combustível para o consumidor (mais de 63%, para ser preciso). A justificativa é desencorajar o consumo, entre outras, por razões ecológicas. Isso significa que, se o governo francês cedesse à pressão dos caminhoneiros para diminuir a cota de impostos e manter o preço estável, o consumo continuaria a pressionar o mercado, em fase de abastecimento apertado, agravando possivelmente a situação.
É em horas como essas que se sente o conflito dramático entre a economia global, voraz, consumista e irresponsável e o meio ambiente atmosférico e oceânico agredido sem piedade pelo envenenamento do ar e dos mares. Não obstante todos os compromissos assumidos na conferência Rio-92, bastou o preço do óleo desabar para que o consumo dos EUA e da Europa aumentasse em 11% na década de 90 e as emissões americanas de gás carbônico crescessem na mesma porcentagem. Não surpreende, assim, que um quebra-gelos russo fretado por turistas para levá-los ao pólo Norte não tenha tido que quebrar gelo nenhum, pois só encontrou no lugar, a perder de vista, a água oriunda do imenso sorvete derretido do pólo. Sem mencionar, é claro, as catástrofes cada vez mais frequentes, como as do petroleiro Erika e da nossa Petrobras, que talvez nos assegure com seus lamentáveis e seguidos desastres o único recorde olímpico brasileiro deste ano.
Cabem ainda duas reflexões. A primeira é que a hipocrisia não se limita à questão ecológica. Os desenvolvidos esperneiam indignados contra o aumento do cru. Não consta, porém, que tivessem agradecido quando, em 1998, graças ao colapso das cotações, se beneficiaram de economia de US$ 60 bilhões, o que ajuda a explicar, em parte, por que economias como a americana conseguiram continuar a crescer e a diminuir o desemprego, quase sem inflação. Nem esboçaram gesto nenhum para aliviar a situação dos subdesenvolvidos não-exportadores de petróleo, cujos preços de matérias-primas sofreram, no mesmo período, perdas sem precedentes, das quais poucas se recuperaram até agora (no caso do Brasil, exceto em celulose e alumínio, continuamos a pagar o preço dessa deterioração).
A última observação tem a ver com a repetição cansativa dos erros de previsão dos analistas. Asseguravam-nos de que a economia atual era muito menos dependente do petróleo, não só devido ao avanço em poupar energia, mas também ao declínio da importância da indústria, em comparação com os serviços e as telecomunicações, muito menos intensivas em energia. Tudo isso faz sentido, mas esqueceram-se de que seguimos vivendo (e por muitos anos) num mundo dominado pelo automóvel e pelo caminhão (ou o querosene dos aviões). Mais uma vez nos preparamos para a guerra errada _a queda da Bolsa de Nova York ou a disparada dos juros_ e fomos inesperadamente atropelados pelo petróleo. Viver nunca foi tão perigoso como na época que conferiu estatuto científico privilegiado ao princípio da incerteza.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 10/09/2000.