Preso em casa pelo colchão de neve que amortalha toda a Europa, releio os versos de Natal esparsos no ”Cancioneiro”, de Fernando Pessoa. Uns de espírito de zombaria: ”… É dia de Natal. Lá para o Norte é melhor: Há a neve que faz mal, E o frio que ainda é pior.” Outros, de recolhimento: ”Natal… Na província neva… Coração oposto ao mundo, Como a família é verdade!”
No Natal passado eram os Estados Unidos que estavam paralisados pelo gelo e o frio, a ponto de verem afetados os ritmos da produção e do consumo. Este ano é a vez da Europa, que há uma década não conhecia os rigores siberianos de um inverno como o atual.

É como se os desencontros dos humores climáticos servissem de imagem de espelho para a falta de sincronia entre a economia americana, de um lado, e as da Europa e Japão, do outro.

Nada traduz melhor esse contraste do que as manchetes das primeiras páginas dos jornais. A do ”Monde” do último dia do ano era: ”O desemprego atinge um francês ativo em cada oito”. A do ”Herald Tribune” de 2 de janeiro é: ”Para Wall Street, o Melhor de Todos os Mundos”.

Numa das margens do Atlântico Norte, as bolsas batem todos os recordes desde a era Eisenhower. Na outra, é o desemprego que alcança níveis jamais vistos desde a Grande Depressão: quase 4 milhões de desempregados na Alemanha, aproximando-se de 3,5 na França, 18 milhões na Europa, cinco vezes mais do que nos anos 60, como proporção da força de trabalho.

Não admira, assim, que, ao anunciar nova alta do desemprego, ”Le Monde” aplique ao ano que findou o mesmo adjetivo, ”medíocre”, previsto no meu artigo de 12 meses atrás sobre 1996 que apenas começava: ”Um ano medíocre e cinzento”.

A OCDE, organização que reúne as 29 economias mais desenvolvidas, prevê para esse conjunto de países um crescimento de 2,4%, em 1997, acelerando para 2,8%, em 1998, à medida que o Japão e a Europa igualem o desempenho americano.

Entretanto, como a economia européia já não cria mais emprego, essa aceleração modesta terá um efeito quase imperceptível sobre o mais grave problema do continente, o desemprego, cuja diminuição seria de menos de um ponto em 1998 (10,9%).

Outro dado pouco alentador é que a previsão da OCDE para a maior parte da década dos 90, é de um crescimento anual médio de 1,9% para os EUA e a União Européia e de 1,6% para o Japão. Esse desempenho da década que deveria começar a realizar as promessas de globalização contrasta lugubremente com o crescimento médio dos anos 60 e início dos 70: uma média de 4,8% na Europa, 4,3% nos EUA e 9,4% no Japão.

Mesmo a melhora recente da performance americana deve ser colocada nessa perspectiva: desde 1990, a taxa mais rápida de crescimento do PIB real alcançada por um país da OCDE não superou os 2,7%.

A desaceleração gradual da produção nesta década se refletiu na contração do comércio mundial, que declinou de 10%, em 1994, para 8%, em 1995, e 5%, em 1996.

É contra esse fundo medíocre que se define o dilema criado pela valorização exagerada da Bolsa. Resultado da ”exuberância irracional” denunciada pelo presidente do FED, a bolha especulativa de Wall Street projeta uma sobra ameaçadora sobre a economia dos EUA e do mundo. Cedo ou tarde, as cotações terão que sofrer correção para corresponder à rentabilidade real das empresas. Acontece, porém, que a exuberância da Bolsa é dos raros fatores ainda capazes de criar o ”efeito riqueza” que compensa, até certo ponto, a tendência deflacionista persistente no Japão e as metas antiexpansionistas impostas aos europeus pelo Tratado de Maastricht.

No momento que a bolha finalmente estourar, teme-se que o efeito inverso possa deprimir adicionalmente uma economia já sem grande apetite para o crescimento. A visão neo-ortodoxa é que, afligidos por déficits orçamentários crônicos e dívida pública elevada, os países europeus não se podem dar ao luxo de se endividarem ainda mais. Espera-se que, com o tempo, o saneamento financeiro reduza os juros de longo prazo e acelere o crescimento, sincronizando a economia da Europa e do Japão com a dos EUA, num círculo virtuoso. Nesse instante e só então, o esvaziamento da bolha não causaria maiores danos.

O único problema com essa teoria é subestimar que em parte a economia dos EUA vai bem porque a dos outros anda mal. Em outras palavras, se os europeus e japoneses crescessem mais rápido, não haveria tanto dinheiro disponível para financiar os títulos do Tesouro americano como hoje. Além disso, se as outras economias operassem em pleno emprego, as pressões inflacionárias sobre salários e matérias-primas, petróleo sobretudo, seriam mais difíceis de controlar do que agora e obrigariam provavelmente o FED a aumentar as taxas de juros.

Sem chegarem a catastróficas, as previsões oriundas da nova sabedoria convencional não são lá das mais animadoras. Resta indagar se essa variante da ortodoxia de povos numa fase de inverno vale mais do que as certezas anteriores. Num dos mais sombrios de seus poemas de Natal, Fernando Pessoa dizia: ”a verdade nem veio nem se foi: o erro mudou”. E concluía, em advertência contra as novas verdades e as tentativas de previsão: ”um novo Deus é só uma palavra. Não procures nem creias: tudo é oculto”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 04/01/97.