Quando se desafiam os críticos a apontar alternativa ao modelo em crise na América Latina, quase sempre se misturam duas coisas que melhor convém manter separadas. A primeira é sustentar que não existiriam, entre países de desenvolvimento comparáveis ao nosso, exemplos bem-sucedidos de políticas diferentes. A segunda é insinuar que tais políticas, mesmo que existam, são de pouca valia para quem se encontra a meio caminho do fundo do poço.

A afirmação inicial é manifestamente falsa. A combinação mortal de dependência excessiva e crescente de financiamentos externos com incapacidade de gerar saldos comerciais é fenômeno tipicamente latino-americano. Não faltam alhures países que prudentemente vêm adotando a liberalização financeira de maneira gradual e limitada, preservando-se do contágio das crises. É esse o caso da China e da Índia, que cresceram ao longo dos 90 a taxas constantes de 10% e 6%, respectivamente. São exemplos de alternativas que não se podem descartar, pois representam somados quase 40% da população do planeta. Sei que cada vez que se menciona entre nós o desempenho da China a resposta evoca o refrão da marchinha carnavalesca: “Chinês só come uma vez por mês”.

Ainda que se admita a excepcionalidade inimitável desses seres frugais e laboriosos, o que se diria dos outros asiáticos, da Tailândia à Coréia, da Malásia a Cingapura, que se expuseram mais à globalização financeira, acabando vítimas da crise de 97 e 98? Todos saíram da crise, recuperando os saldos correntes e as reservas, graças ao dinamismo das exportações. Nos quatro anos de 1997 a 2000, as nações do Sudeste da Ásia acumularam excedentes em conta corrente de US$ 239 bilhões, contra déficit de US$ 88 bilhões nos cinco anos até 1992. Isso, mais o investimento direto e outros influxos, permitiu-lhes abater a dívida com bancos estrangeiros em US$ 354 bilhões, sobrando o suficiente para aumentar as reservas em US$ 214 bilhões. Como foi que eles tiveram êxito onde nós fracassamos? A explicação é simples: eles puderam aproveitar o extraordinário “boom” dos EUA, inundando o mercado americano com artigos eletrônicos porque já possuíam capacidade instalada de exportar produtos tecnológicos e não estavam paralisados por moeda sobrevalorizada. Em outras palavras, embora tivessem cedido à perigosa sedução dos mercados financeiros, fizeram-no em condições superiores às nossas, sem câmbio engessado e só depois de haver desenvolvido competitividade exportadora, por conseguinte com modelo alternativo.

Descartado, assim, o primeiro argumento, o que fica do outro? Aqui é forçoso reconhecer não ser fácil encontrar exemplos de nações cuja vulnerabilidade externa, depois de agravar-se tanto como na América Latina, conseguiram safar-se de modo rápido e indolor. O professor Jagdish Baghwati, de Columbia, propugnador da liberalização comercial, mas crítico da financeira, comenta que a melhor maneira de sair de situação de dependência de recursos de curto prazo é, em primeiro lugar, nunca ter entrado na arapuca. Uma vez na armadilha, diz Baghwati, sair é como pretender “enviar uma carta amável pedindo demissão da Máfia”. A “Onorata Società”, como se sabe, não costuma conceder desligamentos voluntários…

A saída, no entanto, só pode ser a redução gradual da dependência financeira a níveis administráveis mediante a expansão substancial das exportações. Para isso, ninguém é mais bem qualificado do que Sergio Amaral. Trabalhamos juntos em Genebra, Washington e nos ministérios do Meio Ambiente e da Fazenda, e posso afirmar que se trata do homem certo para o lugar certo. Foi o que demonstrou no discurso da posse, de onde acabo de vir. Tanto suas palavras como as do presidente cobriram os pontos essenciais: necessidade de política industrial moderna, de forte empresariado nacional, de contribuição das transnacionais a fim de substituir importações e ampliar exportações, de negociar o acesso a mercado externos.

Vejo, assim, que o debate equivocado sobre a falta de alternativa a modelo supostamente único está em vias de superação. O próprio governo, como fez ao corrigir a política cambial, busca incorporar as modificações impostas pela realidade. Como fazer isso na prática é a questão que tem de ser debatida pelos candidatos da oposição ou da situação: quais são as idéias concretas de políticos para converter o discurso em fatos?

O que se deve abandonar de vez são propostas de falsas soluções, como a dolarização e a radicalização da abertura financeira. No fundo, isso implica tentar completar o ingresso na Máfia com a ilusão de que, desse modo, ela será obrigada a nos dar proteção. É de novo sonhar que a aparência pode tomar o lugar da realidade.

Falando de Cosa Nostra, não se perde em lembrar a cena de uma das melhores novelas sobre o tema, “Il Giorno della Civetta”, de Leonardo Sciascia. Quando o oficial de carabineiros pergunta ao chefe mafioso o que afinal significa para ele a verdade, don Mariano Arena responde: “Se, numa noite enluarada, ao olhar para as águas do poço e ver nelas refletida a lua cheia você resolver mergulhar para abraçar o astro, não vai encontrar a Lua, vai encontrar a verdade”.

Para o incurável pessimismo siciliano, a verdade, gélida e contundente, espera por nós no beijo da morte. Não será melhor explorar outro caminho e começar a encontrar a verdade desde agora, antes de chegar ao fundo do poço?

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 26/08/2001.