É difícil dizer em que medida se parecerá à Guerra Fria o mundo que começa a emergir dos ataques terroristas de 11 de setembro, mas uma coisa é certa: ele já está agravando as assimetrias e desigualdades em prejuízo dos mais fracos e vulneráveis.

A comparação com a Guerra Fria tem certa utilidade, pois permite mostrar que episódios de “guerra quente” como o Afeganistão serão provavelmente mais exceção do que regra. O que vem a seguir terá mais a ver com a terapêutica usual em problemas crônicos, resistentes. Não se tratará tanto de esmagar com bombas inimigos visíveis, exércitos e governos à vista de todos. Os métodos serão os que se empregam contra adversários clandestinos, invisíveis, infiltrados no seio da própria sociedade americana e européia: táticas policiais, de contra-inteligência, luta anti-subversiva.

Fora desses aspectos, a analogia com a Guerra Fria é apenas parcialmente válida. A diferença fundamental vem da própria essência do sistema internacional. O anterior era um sistema bipolar, o mundo dividido em dois blocos, cada um tendo à testa uma superpotência nuclear. Apesar da retórica maniqueísta, de “quem não está conosco está contra nós”, é óbvio que o mundo não se vai dividir em duas metades em razão do terrorismo. A aproximação dos EUA com a Rússia e a China torna ainda mais remota a hipótese de volta ao bipolarismo, já implausível devido à disparidade de poder estratégico entre os americanos e o resto.

Há outras diferenças relevantes. Além da URSS, da China e de todas as “democracias populares” da Europa Oriental, o bloco socialista possuía aliados ativos nos quatro cantos do mundo, sob a forma da rede de partidos comunistas que olhavam para a União Soviética como a “Pátria do Socialismo”.

Dispunha, acima de tudo, do marxismo-leninismo, ideologia de forte apelo universalista, atingindo desde os intelectuais até operários. Nada disso ocorre no caso do atual terrorismo, cuja ideologia estreita, excludente, não apresenta atratividade nem para a imensa maioria de muçulmanos fervorosos. É por isso que, sem subestimar a dificuldade da empreitada de erradicar o terrorismo fundamentalista, duvido que ela dure quase 50 anos e nos ameace de destruição atômica, como sucedeu várias vezes com a Guerra Fria.

Em câmbio, não será surpresa se o resultado líquido da ofensiva antiterrorista relegar à posição ainda mais marginal as áreas afastadas do olho do furacão e sem qualquer utilidade geoestratégica. Foi o que aconteceu com a América Latina, que perdeu duplamente com o confronto ideológico. De um lado, não teve prioridade suficiente para justificar um mini-Plano Marshall e ficou à míngua de recursos. Do outro, viu todas as reformas sociais de que necessitava atrasadas por décadas pela feroz repressão das oligarquias alijadas aos militares e a Washington, sob o pretexto de combater a subversão comunista.

Desta vez, a primeira vítima da inversão de prioridades será provavelmente a África. Esquecidos sempre de todos, os africanos haviam finalmente unificado suas propostas em um só plano: a Nova Iniciativa Africana. Criaram pelo modelo europeu a União Africana e esperavam receber, em contrapartida, os financiamentos necessários a impulsionar o desenvolvimento do continente. Como os recursos disponíveis são limitados, o risco agora é que eles sejam redistribuídos para atender à exigência de reconstrução do Afeganistão, ajuda ao Paquistão e às outras repúblicas da Ásia Central.

Mas, se essa é uma eventualidade a confirmar, há outras consequências danosas que já se concretizaram. A principal decorre dos efeitos do terrorismo, que também nos atingem duplamente. Sofremos, primeiro, pelo agravamento da recessão americana e mundial, o encolhimento dos mercados para exportar, o retraimento dos financiamentos para rolar a dívida devido à aversão ao risco em momento de crise. Além disso, somos castigados adicionalmente por não podermos recorrer, como o Primeiro Mundo, aos remédios clássicos do receituário keynesiano.

Que fizeram americanos e europeus após o 11 de setembro? Injetaram bilhões de dólares de liquidez no sistema financeiro, a juros mais baixos que antes, pois as taxas foram reduzidas a níveis inferiores à inflação, aprovaram pacotes de gastos que podem chegar a 2% do PIB dos EUA. Nós, em contraste, temos de continuar a praticar juros que sufocam o crescimento, o que é um contra-senso numa hora de recessão em escala mundial. Ao mesmo tempo, enquanto os americanos estimulam a economia com despesas novas e cortes de impostos, estamos obrigados a apertar mais o cinto para gerar superávit primário altíssimo. É o oposto do que fizemos na Grande Depressão dos anos 30, quando reagimos à crise mundial criando condições para o crescimento. Se precisarmos de socorro do FMI, tampouco vamos encontrar refresco: as novas regras exigem juros punitivos, acima do mercado, para os mecanismos compensatórios, de contingência e emergência. Em suma, de novo o contrário do que se pratica nas economias avançadas.

Se faltasse um exemplo a mais da assimetria de tratamento, bastaria olhar para o que se passa com os setores econômicos diretamente afetados pelos atentados: companhias aéreas, de seguros, turismo em geral. Nos EUA e na Europa, bilhões de dólares estão sendo despejados nessas empresas. Quantos países em desenvolvimento poderão socorrer da mesma forma suas companhias, igualmente fragilizadas pela perda do mercado americano? Como concorrer contra o Tesouro dos Estados Unidos e da Europa? Como se vê, o terrorismo pode ter mudado muita coisa. Só não mudou a irredutível desigualdade de condições econômicas que pesa contra os vulneráveis, faça bom ou mau tempo.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 28/10/2001.