No poema “Las Causas”, Jorge Luís Borges explica um dos versos com esta nota sugestiva: “Quinhentos anos antes da era cristã, alguém escreveu: Chuang-Tzu sonhou que era uma borboleta e não sabia, ao despertar, se era um homem que tinha sonhado ser uma borboleta ou uma borboleta que agora sonhava ser um homem”.
Conheci Borges e tive com ele em Buenos Aires longa e curiosa conversa que talvez conte um dia, se vier a calhar. Sei assim, por experiência própria, que ele era capaz de jogar com o interlocutor um jogo sutil de simulação e ironia, um poeta-fingidor como Fernando Pessoa. Quem visita o seu túmulo no velho cemitério de Genebra, onde também descansam Calvino e a filha de Dostoievsky, verá que o epitáfio é em uma daquelas misteriosas línguas nórdicas que só ele conhecia e que ali, sem tradução, interpela a ignorância de todos nós.
Mas a dificuldade de saber se é o homem que sonha a borboleta ou a borboleta que sonha o homem vem a propósito das confusões que frequentemente tornam irreconhecível o que pensamos ou dizemos quando interpretados por outros.
Venho afirmando, por exemplo, não ser verdade que a globalização obriga a todos, e em especial os países que se querem desenvolver, a adotar um modelo exclusivo inspirado no Consenso de Washington ou outras receitas bem-pensantes. E, como prova de que é perfeitamente possível seguir caminho próprio e adequado às especificações de cada um, tenho apontado para o êxito da China, posto em relevo esta semana pela visita do presidente Clinton. Tanto bastou para que saísse no jornal ou dissessem que estou pregando o modelo chinês para o Brasil! Alguns chegam mesmo a se dar ao trabalho de demonstrar o óbvio, que a China não é o Brasil, da mesma forma em que o homem não é a borboleta.
Ora, se fosse verdade que minha receita para o Brasil é o remédio chinês, eu estaria incorrendo no mesmo erro dos que julgam viável importar modelos de país como se importam (ou pirateiam) figurinos de Chanel ou gravatas de Gucci.
O que digo simplesmente é, primeiro, que há quase 20 anos a China encarna o mais indiscutível exemplo de sucesso da “boa” globalização (há globalização boa e má, assim como existe bom e mau colesterol). Isto é, ela vem crescendo, ano após ano, a taxas incrivelmente altas, com maciça redução da pobreza, graças basicamente a sua integração na economia mundial via aumento das exportações (e das importações).
Quem desconfia de que se trate de propaganda da esquerda, pode consultar fonte impecável, o professor Joseph Stiglitz, economista-chefe do Banco Mundial e ex-presidente do Conselho de Assessores Econômicos do presidente dos Estados Unidos. No melhor texto sobre desenvolvimento que li nos últimos seis meses, intitulado “Para Além do Consenso de Washington”, Stiglitz transcreve o resultado de estudo do Banco Mundial.
Partindo da hipótese de considerar as Províncias chinesas (30 no total) como se fossem nações independentes, as 20 economias que mais cresceram no mundo, entre 1978 e 1995, em 18 anos, portanto, seriam 20 Províncias chinesas. E mais: dois terços do crescimento de países de baixa renda nesse período foram produzidos pela China.
Em segundo lugar, é o próprio Stiglitz que comenta, esse fenômeno desafia as explicações da economia convencional, pois foi obtido em franca violação de muitos dos postulados do consenso washingtoniano.
Até hoje, por exemplo, privatização é na China palavra feia. Em compensação, o governo, sem privatizar, estimulou a competição e hoje se apresta a tentar resolver o problema das estatais deficitárias. O investimento estrangeiro foi ativamente favorecido, mas apenas para a exportação.
Ouvi pessoalmente da ministra de Indústria e Comércio, senhora Wu, que só agora, a fim de atrair investimentos para as Províncias atrasadas do interior, as autoridades permitiriam que parte da produção desses projetos seja vendida no mercado interno. O país continua a praticar estrito controle dos mercados de capital e só pretende alcançar a liberalização financeira gradual e prudentemente. Por isso talvez tenha escapado até agora dos piores efeitos do contágio da epidemia asiática.
Em matéria de liberalização comercial, a abertura segue o nosso conhecido lema: “lenta, gradual e segura”.
Não quero sugerir com isso que todas ou cada uma dessas políticas sejam apropriadas para nós, que nos encontramos claramente em estágio diferente. Não se pode negar, contudo, que, talvez por ser adequadas às peculiaridades chinesas, elas estejam dando certo, ao menos na China.
Passando da borboleta ao gato, poderíamos dizer, como o finado Deng Xiao Ping, que o gato chinês, não importa se preto ou branco, consegue pegar rato. Outros bichanos, quem sabe de melhor raça, não conseguem. Reconhecer esse fato não significa formular juízo sobre outros aspectos da realidade da China, como o regime político, os direitos humanos, a situação no Tibete etc.
Um país não se compra pronto e acabado, de porteiras fechadas, com manual de instruções em inglês (ou chinês). Tem de ser construído a partir dos problemas e sonhos dos seus habitantes, em harmonia com sua cultura, consigo mesmo e com o mundo.
Não podemos nem precisamos importar o modelo da China ou o dos EUA, mas, como eles, somos um grande povo em um território continental, um mercado de escala suficiente para possibilitar relativo grau de autonomia. A fim de realizar essa autonomia em um projeto nacional autêntico, temos de começar por dar resposta a duas perguntas:
1º) Qual é o problema brasileiro prioritário e inadiável, capaz de unificar todo o país em um esforço coletivo?
2º) Qual é a modalidade de inserção no mundo que facilite, em vez de dificultar, a integração interna com os brasileiros marginalizados e excluídos?
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 04/07/1998.