Quando os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial, o presidente Wilson anunciou os seus famosos “14 Pontos”, o programa da “guerra para acabar com todas as guerras”. Era um desígnio ambicioso que incluía, entre outras coisas, a reestruturação da economia mundial com base no livre comércio e a criação de nova ordem internacional por meio da Liga das Nações. Diante dessa extraordinária proposta para a época, coube a Clemenceau, o “Tigre”, então primeiro-ministro francês, resumir a reação cínica dos estadistas europeus, escaldados por séculos de decepções: “Até o bom Deus, que é todo-poderoso, se contentou com dez mandamentos, e os americanos nos vêm agora com 14!”.

O ceticismo do Velho Continente foi, como se sabe, confirmado pelos fatos. Não só predominou o que o dirigente italiano Vittorio Emmanuelle Orlando chamava de “il sacro egoismo”, como o fracasso de todos os sonhos conduziu inelutavelmente a uma guerra ainda pior que a precedente.

Evoco esses personagens e ditos semi-olvidados, resgatando-os das brumas de uma manhã nova-iorquina. Escrevo de um 33º andar, em frente do edifício das Nações Unidas, e vejo a meus pés o East River com suas barcaças e pontes formigantes e a pujança inigualável de Nova York, a Roma da globalização e do terceiro milênio. Vim para o debate sobre a economia mundial que abre o período de sessão do Ecosoc, o Conselho Econômico e Social da ONU, que este ano reuniu Kofi Annan, o secretário-geral da organização, o diretor do FMI, Michel Camdessus, o presidente do Banco Mundial, Jim Wolfensohn, e este criado.

No ano passado a discussão foi em Genebra. Meus colegas, missionários empenhados em pregar aos infiéis o paraíso da globalização, apresentaram um panorama radioso evocativo das profecias stalinistas de Aragon sobre os “amanhãs que cantam”. De minha parte, comecei por dizer: “Concordamos em discordar”, e descrevi um quadro mais realista. Após a reunião, Camdessus estranhou meu pessimismo. Disse-lhe que os sinais de mudança de maré me pareciam inconfundíveis. Era 2 de julho de 1997, o dia fatídico da desvalorização da moeda tailandesa; nem ele nem eu suspeitávamos de que começava longa e dolorosa agonia para a Ásia e para a economia de outros países.

Desta vez, concordamos todos que não há indícios de melhora. A crise se torna mais profunda, ameaça desfazer as conquistas de 30 anos na luta contra a pobreza. Um ano depois, não houve recuperação rápida, como na crise do México. A razão é simples: no caso mexicano, os EUA bancaram um pacote financeiro gigantesco, desembolsado imediatamente, e mantiveram o mercado aberto para que a economia do vizinho se recuperasse via exportações. No caso da Ásia, nenhum país está desempenhando esse papel. Pior até: o país que deveria assumi-lo, o Japão, é ele mesmo parte do problema. Como se disse no debate, as dificuldades nipônicas constituem “uma crise dentro da crise” e têm potencial destrutivo muito maior.

Que fazer? Ninguém parece saber ao certo. O G-7, que pretende governar o mundo e a economia, não consegue nem governar sua própria casa, pois até agora fracassou em coordenar o valor do iene em relação a outras moedas. Embora com alguns sinais de flexibilidade (em relação aos déficits orçamentários sobretudo), o FMI se aferra a uma terapia cujos efeitos tóxicos ameaçam liquidar os doentes. Os juros altos, por exemplo, já duram 12 meses, muito mais do que o período curto recomendado pelos especialistas, sem haver restaurado a confiança. As desavenças que os velhos marxistas atribuiriam às rivalidades intra-imperialistas se acentuam entre japoneses e americanos, economistas do FMI e do Banco Mundial. O Fundo se vê acossado. À esquerda, pelos que o acusam de insensibilidade social e cegueira intelectual, e à direita, por gente como o presidente do Bundesbank, Tietmayer, que o responsabiliza por leniência com os emprestadores imprudentes.

O único saldo positivo de tudo isso é que as instituições de Bretton Woods, antes imperturbáveis na olímpica arrogância e auto-suficiência com que ignoravam as queixas, começam a ter a segurança abalada pela adversidade e a frustração. Não se pode ainda falar de humildade, mas já se esboça uma atitude mais aberta ao diálogo, a disposição de escutar as vítimas. De fazer um gesto em direção às Nações Unidas, organização muito mais democrática, pois baseada no princípio “um país, um voto” (salvo no Conselho de Segurança), e não no sistema de cotas de capitais, que dá aos ricos o controle absoluto do FMI e do Banco Mundial e os subordinam a seus interesses e a sua visão do mundo.

Tenho a impressão de que a crise sistêmica que está na raiz da frequência cada vez maior de colapsos monetários e financeiros desde o abandono do sistema original de Bretton Woods há 26 anos (uma crise grave a cada 19 meses) não admite soluções simplistas, unidimensionais, a ser adotadas de um só golpe, de uma vez por todas. A complexidade do desafio atual, a incerteza de que alguém possua realmente as respostas a todas as perguntas, a necessidade desta vez de uma participação mais ampla dos países pobres, da sociedade civil, na busca de uma nova arquitetura, tudo isso aconselha a que se inicie um processo ordenado de avanços graduais, com base em agenda equilibrada, não imposta do alto, mas que recolha as angústias e preocupações de ricos e pobres, de credores e devedores. Soa talvez tão idealista como o sonho de Woodrow Wilson. Quem sabe, porém, se o poder criativo dos grandes desafios, sua força catalisadora para precipitar decisões, antes julgadas impensáveis, não será capaz de desencadear esse processo? É essa a idéia contida no título deste artigo, uma expressão hoje muito repetida por aqui. Em que consiste, de fato, a “crise ótima”? É aquela cujo tamanho e intensidade seriam suficientes para romper a inércia e produzir as decisões necessárias, sem atingir o limite a partir do qual veríamos o colapso do sistema.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 11/07/1998.