No samba de Noel, o x do problema era sair ou não do Estácio. Em meus tempos de estudante no Rio, 40 anos atrás, conheci um pouco o bairro quando ia visitar um padre belga que lutava para melhorar a favela do morro de São Carlos, no Catumbi. Como o Estácio e talvez até mais, era este um dos bairros que lembravam o velho Rio de Janeiro de Machado de Assis, com seus casarões de condes e barões do Império transformados em cortiços e cabeças-de-porco, com os túmulos dos grandes de outrora invadidos pelo mato do esquecimento…

Também caiu em desuso a expressão que deu o título a Noel. Mas, desde que cheguei ao Brasil no começo desta semana e me perguntam o que acho que vai acontecer com a crise financeira mundial, o refrão me volta à memória.

O x do problema é, de fato, o seguinte: será que o Japão, principal país credor do mundo, segunda maior economia, conseguirá continuar a financiar, como vem fazendo há décadas, os déficits comerciais americanos? Ou melhor, será possível manter esse eixo que une as duas maiores economias globais e move o mundo, pelo qual o Japão fornece o excesso de poupança que permite aos Estados Unidos seguir como o sorvedouro de grande parte das exportações do planeta?

A pergunta só tem cabimento porque, a partir do estouro da “bolha especulativa”, em 1989, a economia japonesa se transformou de maravilha do universo em problema crônico. Acho que não se registra nos anais exemplo comparável de mudança de percepção tão súbita e chocante. Até ontem, as vitrinas de livrarias americanas estavam atulhadas de livros sobre o desafio ou o perigo nipônico, alguns até de caráter sensacionalista que viraram filmes de conspiração com Sean Connery. Hoje, com exagero e superficialidade iguais, destrata-se o Japão como o “homem doente” da economia global, do mesmo modo que se fazia com o império otomano no início do século.

Para ver um pouco mais claro, convém considerar os seguintes dados concretos da equação:

1º) o estouro induzido da “bolha” provocou uma deflação, isto é, queda constante nos valores reais dos ativos, sobretudo imóveis, mergulhando a economia em prostração que vem impedindo seu crescimento há oito anos;

2º) o índice Nikkei da Bolsa, que era de 39 mil, em 1989, oscila hoje em torno de 16 mil, ameaçando às vezes afundar a 15 mil;

3º) a fim de sair da estagnação, as autoridades ministraram injeções maciças da terapêutica keynesiana consagrada para síndromes deflacionárias _um pacote de gastos orçamentários de quase US$ 170 bilhões, principalmente para obras públicas, e uma taxa de redesconto de 0,5%, quase dinheiro grátis, para dar aos bancos chance de se salvarem;

4º) a economia respondeu bem e voltou a crescer, mas, como era de esperar, o déficit do governo e das municipalidades saltou para 7% do PIB, o mais alto do G-7, e a dívida pública, antes insignificante, explodiu até 90%-100% do PIB;

5º) para melhorar a posição fiscal, o governo aumentou em abril o imposto de vendas de 3% a 5%, abalando a confiança e empurrando de novo a economia para a recessão _nos seis meses findos em setembro, houve uma contração de 1,4%.

Como desgraça pouca é bobagem, a equação se complicou com a crise nos países asiáticos, que absorvem 44% das exportações nipônicas. Algumas estimativas dos créditos duvidosos do sistema bancário chegam a sugerir cifras de US$ 900 bilhões ou mais, dos quais US$ 120 bilhões a empresas atuantes nas nações asiáticas em crise.

O iene despencou, na semana passada, a menos de 130 por US$ 1, a mais baixa cotação dos últimos cinco anos. É fácil entender o que isso significa: aumenta a competitividade das exportações e vai crescer ainda mais o saldo comercial do Japão com os EUA. Ora, nos primeiros dez meses deste ano, o saldo já se havia expandido a 55,6%, gerando recriminações e advertências do presidente Clinton e de todo o alto escalão econômico.

Para ser justo, seria preciso levar em conta que o Japão tem o maior déficit em serviços do mundo (US$ 58 bilhões) e 44% desse déficit é com os EUA, compensando em boa parte o saldo do comércio de mercadorias. O déficit comercial americano com o resto do mundo anda por volta de US$ 150 bilhões e poderia chegar a US$ 250 bilhões em dois anos sem que, a rigor, essa quantia devesse ser considerada exorbitante em termos de envergadura da economia dos Estados Unidos. Mas a verdade econômica não é necessariamente a verdade política como descobriria quem tentasse vender este argumento à General Motors ou aos sindicatos de Detroit.

As variáveis a observar na equação são, primeiro, os bancos cuja posição ficará crítica se o índice Nikkei cair abaixo de 15 mil (a falência da Yamaichi foi a 13ª neste ano). Em seguida, as empresas de seguro, maiores investidoras institucionais do mundo, que detêm, junto com outros setores nipônicos, cerca de 10% dos bônus do Tesouro americano (US$ 320 bilhões). Essas empresas são obrigadas por contrato a assegurar rendimento anual de 4,7% aos aposentados; desde o início do ano fiscal, o rendimento médio foi de apenas 2,9%. É fácil imaginar o que sucederia se os bancos e companhias de seguro decidissem em massa vender seus bônus do Tesouro: os juros teriam de ser elevados substancialmente e é provável que a Bolsa de Wall Street viria abaixo. É esse o cenário catastrófico mais temido nos meios financeiros internacionais.

Claro está que o secretário do Tesouro e os homens mais poderosos dos EUA e do Japão estão fazendo tudo para impedir que isso aconteça. Não há razão nenhuma para que os japoneses, autores de tantas proezas no passado, não tenham êxito desta vez. É bom que assim seja, pois disso depende o futuro deles e o nosso. Afinal, descobrimos todos, os americanos inclusive, que o mundo, em vez de precisar ter medo, tem é necessidade de um Japão forte e dinâmico.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 20/12/1997.