”O Comitê sobre União Aduaneira acredita que tal união é no momento impraticável em escala continental… Mas, embora o comitê julgue difícil atingir reciprocidade irrestrita imediatamente, ele crê que tal meta deve ser realizada de forma gradual. O primeiro e mais eficiente passo nessa direção é a negociação de tratados parciais com troca de vantagens similares e equivalentes; pois, se as concessões mútuas não fossem equivalentes, os tratados logo se tornariam odiosos, não poderiam durar mais do que um tempo limitado e acabariam por desacreditar o sistema inteiro.”
Não é, como se poderia imaginar, uma decisão da reunião de Belo Horizonte em apoio à estratégia gradual propugnada pelo Brasil. Trata-se de episódio muito mais antigo, ocorrido quando a capital mineira não havia sido ainda construída na localidade de Curral d’El Rei.
Corria então o ano da graça de 1890. Um século se aproximava do seu final em meio à prosperidade sem precedentes da primeira grande fase da globalização do comércio, dos investimentos e, em contraste com o momento atual, da livre imigração de 60 milhões de europeus.
Os Estados Unidos emergiam como potência global. Em breve o seu poder se faria sentir no Panamá, na Nicarágua, em Cuba e no Haiti. Hoje, cem anos depois, qualquer semelhança não é mera coincidência.
Com o apoio do Congresso, o presidente Cleveland e seu secretário de Estado, James Blaine, haviam proposto uma união aduaneira que se estendesse do Alasca à Patagônia. Para examinar essa e outras sugestões, reuniu-se em Washington, a partir de novembro de 1889, a Conferência Internacional Americana, ainda não classificada como a primeira, pois não se sabia que outras se seguiriam na evolução do movimento pan-americano que nascia naquela hora.
Passado mais de um século, não é apenas por curiosidade de antiquário que se devem desenterrar dos arquivos os debates da conferência. Não obstante algumas diferenças de circunstâncias, o que mais impressiona nos anais da reunião é justamente a permanência, a contínua validade de certos parâmetros que balizaram a discussão e a decisão sensata de julgar inviável a união aduaneira, inclusive com o voto dos EUA, na resolução transcrita no início deste artigo.
Destaco, entre eles, três fatores que me parecem fundamentais para a compreensão das dificuldades que, tanto ontem como hoje, se antepõem à realização de um projeto similar: 1) a astronômica disparidade dos parceiros; 2) os vínculos mais fortes de alguns com a Europa; 3) a falta de sincronia em matéria de estratégia comercial entre os EUA e certos países latino-americanos.
Em relação ao primeiro ponto, já dizia o comitê em 1890 que ”as repúblicas americanas diferem tanto em território, população e riqueza nacional que… os Estados pequenos não estariam em condições de proteger adequadamente seus interesses”. Desde então, a disparidade se agravou, pois temos agora 34 países, que vão dos EUA ao Haiti.
Quanto ao segundo, assinalava um dos delegados argentinos, o futuro presidente Roque Saenz Peña: ”Não é mistério para ninguém que as nações da América sustentam e desenvolvem seu comércio pelas suas relações com a Europa”.
Seu colega do Prata dizia que ”o Uruguai teria de transferir seu comércio por completo e de cancelar seus tratados comerciais com as potências européias… (gerando) dificuldades insuperáveis…”.
A relutância do Mercosul não é, assim, nova nem arbitrária. Sua inspiração é a mesma que no passado: manter aberta a opção européia, buscar a diversificação na dependência. Como esperar outra atitude de quem, ao contrário do México, está longe de ter nos EUA mais de 80% dos seus mercados?
Por último, as estratégias comerciais não coincidem, embora aqui tenha ocorrido uma inversão das posições tradicionais. Um século atrás, os latino-americanos tinham regime relativamente aberto para as manufaturas, que importavam dos países industriais.
Os norte-americanos é que gozavam da bem merecida reputação de protecionistas, com média tarifária de 33%, quase três vezes superior às da França, da Alemanha e do Japão e cerca de oito vezes maior que a da Inglaterra. É o que permite a Saenz Peña, não sem uma ponta de ironia, expressar a esperança de que ”algum dia, os EUA esposarão nossa causa, já que não somos protecionistas e eles estão se aproximando do estágio de crescimento em que não poderão continuar a sê-lo”. E profetiza que ”os EUA dominarão um dia o comércio do mundo com suas manufaturas”. Nesse dia, poderia se dizer: ”Os EUA reformaram sua tarifa e renunciaram para sempre à proteção”.
Aliás, Saenz Peña, criador de frases imortais, deveria ser entronizado como o patrono do Mercosul. Dele são, com efeito, as frases que parecem encomendadas para servir de lema à estratégia do grupo. A primeira, para realçar a coesão interna, é: ”Tudo nos une, nada nos separa”. A segunda, para manter abertas as opções, é o final do seu discurso de 15 de março de 1890: ”Que o século da América, como já chamamos o século 20, contemple nosso comércio livre com todas as nações da terra… Que a América seja para a humanidade”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 17/05/97.