“Exatamente 150 anos após a publicação do ‘Manifesto Comunista’, a desigualdade ocupa espaço crescente na agenda global. Nos Estados Unidos, a renda das famílias mais pobres, que somam 20% do total, tem declinado constantemente desde o início dos anos 70. Enquanto isso, a renda dos 20% mais ricos aumentou em 15% e a do 1% no topo da pirâmide cresceu em mais de 100%.”
Não é, como se poderia pensar, um pronunciamento da Rifondazione Comunista, os nostálgicos puros e duros que acabam de causar a queda do governo italiano. Trata-se da primeira frase de “Life is Unfair: Inequality in the World” (“A Vida é Injusta: A Desigualdade no Mundo”), artigo escrito para a revista “Foreign Policy” por Nancy Birdsall, até há pouco vice-presidente-executiva do BID como representante do governo americano e economista de impecáveis credenciais ortodoxas.
O artigo continua dizendo que, em termos globais, “a relação entre a renda média do país mais rico e o mais pobre do mundo, que era de 9 a 1, no começo do século, cresceu hoje para 60 a 1; ou seja, a família média nos EUA é 60 vezes mais rica do que na Etiópia”. O mais perturbador nos Estados Unidos, segundo a autora, é o aumento da desigualdade não apenas devido a ganhos no topo, mas por causa de perdas na base.
Pela primeira vez na história americana, a educação está reforçando a desigualdade, em vez de compensá-la, pois o acesso à educação de qualidade depende da capacidade de pagamento. E isso no país por excelência da democracia, da economia de mercado, da globalização e da revolução tecnológica da informação.
Nada mais lógico, portanto, do que atribuir o Prêmio Nobel de Economia ao professor Amartya Sen, economista que, em lugar de fazer fortuna no mercado financeiro, preferiu dedicar a vida ao estudo da desigualdade, da pobreza e da fome. Aliás, a melhor prova de como, em um ano, “mudamos completamente de mundo” (para usar expressão do diretor do FMI, Michel Camdessus) é lembrar que o prêmio do ano passado foi conferido a dois sócios do fundo especulativo que por pouco não provoca o colapso dos mercados financeiros em Wall Street e outros países.
Em contraste com a acanhada perspectiva cultural de muitos economistas modernos, Amartya Sen, homem de profunda espiritualidade e cultura filosófica, nunca separa os problemas econômicos de suas implicações em valores morais, em significado ético.
Para ele, a pobreza e a desigualdade não podem ser cabalmente compreendidas apenas na base de comparações de renda “per capita”. Todo indivíduo tem o direito de esperar da sociedade a possibilidade de alcançar coisas que lhe aparecem como valores. A escala desses valores começa com os mais elementares, como evitar a mortalidade precoce, prevenir a doença, ter casa, roupa e comida e se estende às realizações mais complexas, de que são exemplos tomar parte na vida da comunidade, viver existência estimulante e feliz, conquistar o respeito de si próprio e dos outros. A desigualdade e a pobreza devem ser avaliadas com base no acesso a esses valores.
A desigualdade não é simplesmente o efeito inevitável do subdesenvolvimento (pois está em aumento nas economias mais avançadas) nem a consequência fatal de processos econômicos ou tecnológicos. Na sua raiz encontra-se sempre um julgamento de valor perverso que conduz a desprezar e desvalorizar certas categorias de pessoas e, por meio desse mecanismo às vezes inconsciente, provoca a insensibilidade da classe dirigente ao destino desses seres humanos.
Uma das mais chocantes ilustrações dessa verdade é a pesquisa de Sen sobre os resultados trágicos da desigualdade entre homens e mulheres. Em alguns dos grandes países asiáticos, a começar pela China e a Índia, os estudos demográficos mostram existir muito mais homens do que mulheres, ao contrário do que ocorre na maioria das sociedades. Amartya Sen, que além de economista e filósofo é grande matemático, procurou calcular quantas mulheres estariam vivas se a proporção dos sexos nesses países se assemelhasse à média normal. Ele chegou à conclusão estarrecedora de que, só na Índia e China, há pelo menos 100 milhões de mulheres “desaparecidas”, isto é, que faltam nas estatísticas. Parte desse número se explica pelo infanticídio e o aborto, mas a maior parte foi vítima da discriminação, as meninas e mulheres recebendo desde cedo muito menos comida e cuidados médicos do que os meninos e homens. Em outras palavras, foi a desigualdade que matou esses milhões de seres humanos.
Suspeito de que a mesma razão constitua uma das explicações principais da mudança do perfil racial da população brasileira, de forte predomínio africano até bem entrado o século 19. Como entender que um país que recebeu oito vezes mais africanos do que os EUA (4 milhões contra menos de 500 mil) não tenha hoje uma população negra perceptivelmente superior à americana? A imigração européia, a extensa miscigenação, critérios distintos de cor têm algo a ver com isso. Muito da mudança de composição, contudo, vem da mortalidade maior da população pobre, que coincide em boa medida com a parcela mais escura: são eles os meninos de rua massacrados pela polícia, os marginais que não chegam aos 20 anos, os que morrem de doença antes dos 30. Assim, a velha ideologia do “embranquecimento” da população opera não só sutilmente, por meio da miscigenação, mas brutalmente, pelo efeito mortal da discriminação.
Amartya Sen tem palavras duras para os países que toleram fomes periódicas, cujas causas se devem muito mais à incompetência, à falta de motivação política para evitar o flagelo do que à falta de alimentos. Nesse ponto, é categórico: “Nenhum governo que tolera fomes periódicas é verdadeiramente democrático”.
Aliás, suas palavras sobre a Índia se ajustam perfeitamente ao Brasil, classificado por Nancy Birdsall como “provavelmente o país mais desigual do mundo”: a censura ao “ultra-ativismo” do governo em áreas como a da produção econômica em contraste com a “subatividade” nas esferas sociais complementares ao desenvolvimento, a ausência de engajamento político real para produzir a mudança social, eliminar o analfabetismo, a subnutrição, fornecer serviços básicos de saúde e segurança.
Sen nasceu na região de Bengala, hoje dividida entre a Índia e Bangladesh. Tem muitas afinidades com seus compatriotas, o poeta Rabindranath Tagore e o grande cineasta Satyajit Ray. Ficou marcado para sempre pela fome de 1943 em Bengala, que causou a morte de milhões de pessoas porque o governo colonial britânico decidira estocar alimentos para os soldados em campanha. “Eu tinha 9 anos e me lembro do choque de ver gente descarnada, que vinha não se sabia de onde e morria aos milhares. O que me chocou igualmente foi perceber que eu não conhecia ninguém entre toda essa gente. Eram todos pobres e nós não conhecemos os pobres. Esse é o grande problema de nossa sociedade: não nos preocupamos com os pobres, não pensamos neles. Por isso, quando, ao saber que sou economista, alguém me pede conselho sobre como investir, respondo sempre: Não tenho a menor idéia e não me interessa. Aliás, o que me interessa são justamente as pessoas que jamais terão dinheiro para investir.”
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 24/10/1998.