Não é bem isso, mas talvez se possa traduzir desse modo a determinação do presidente Franklin Roosevelt ao ver, no fim do seu primeiro mandato, a Suprema Corte destruir, uma a uma, todas as medidas do seu programa contra a Grande Depressão. Aquilo de que este país precisa, disse ele, é de “bold experimentation”, de experimentação audaciosa. Se a primeira solução não der certo, temos de recomeçar de novo, uma, duas, tantas vezes quantas necessárias para resolver o problema. Só não podemos ficar de braços cruzados, sob a alegação de que não nos deixam trabalhar ou que as dificuldades são insuperáveis. Foi assim que ele restituiu o otimismo ao povo americano, venceu a depressão e o desemprego, salvou o capitalismo dos anos 30 e ajudou a derrotar o nazi-fascismo.
É dessa mesma rejeição do derrotismo e da resignação que necessitamos hoje para enfrentar o desafio da desigualdade crescente no mundo ou no Brasil, por efeito da globalização, da revolução tecnológica ou de causas tradicionais. Soube que, no domingo passado, “O Estado de S.Paulo” deu seguimento ao cordial debate que temos mantido sobre o assunto. Não pude ler ainda o editorial (escrevo na terça-feira, 1º de agosto), pois estava transitando de Nova York ao coração do País Basco, perto de Bilbao, e de lá, via Genebra, acabo de chegar a Jacarta, de onde envio este artigo. Como se vê, programa para globalizador nenhum botar defeito. Pois bem, queria dizer que o importante não é tanto saber se o aumento da desigualdade se deve sobretudo a características do sistema global ou a motivos nacionais mais perto de nós, os chamados “erros humanos” nos acidentes. O que conta é a atitude de fatalismo ou de combate que adotamos diante de tais tendências. Para isso, convém desconfiar das explicações que atribuem o agravamento das disparidades ao determinismo de fenômenos econômicos perante os quais seríamos impotentes. Na semana passada, aludi a como o professor Anthony Atkinson desmonta alguns dos mitos do fatalismo. Desta vez, gostaria de falar um pouco sobre o estudo “Distribuição de Renda e Desenvolvimento”, da professora Frances Stewart, de Oxford.
Ela começa por tomar patente a fragilidade da base empírica da célebre hipótese de Kuznets, segundo a qual a concentração da renda tenderia a aumentar, à medida que a economia se desenvolve, para principiar a reduzir as desigualdades depois que se atinge nível elevado de desenvolvimento. Não obstante as numerosas exceções e inconsistências que erodiram a teoria _a última das quais o recente agravamento das disparidades em países altamente desenvolvidos, como os EUA e a Inglaterra_, essa hipótese foi longamente aceita e até utilizada como pretexto para não fazer nada a respeito, como ocorreu entre nós na época em que éramos embrulhados com o conselho de esperar o bolo crescer, antes de querer reparti-lo. Em nossos dias, ao contrário, vem-se acumulando impressionante volume de dados sugerindo que os países com distribuição de renda menos desigual crescem mais rapidamente e por tempo mais longo.
Algumas das explicações são econômicas:
1º) maior igualdade no acesso a fatores de produção como a terra ou o crédito produz índices mais altos de produtividade e permite aos pobres ter mais informações e fazer investimentos mais eficientes;
2º) a igualdade reduz a pobreza e possibilita níveis melhores de nutrição, saúde, educação, o que resulta em força de trabalho mais produtiva e inovadora;
3º) do mesmo modo, o aumento da igualdade torna possível ampliar os mercados domésticos, melhor explorar as economias de escala e, em consequência, acelerar a industrialização e o crescimento;
4º) em contraste, a desigualdade está associada à fertilidade mais alta, e a pressão demográfica pesa negativamente sobre a possibilidade de elevar o nível “per capita” de renda e bem-estar.
Outras razões são de natureza política:
1º) a desigualdade extrema impede um mínimo de coesão e consenso interno, acarreta instabilidade política, acirra os conflitos distributivos, é fator de incerteza, de temor de investir;
2º) as disparidades e pressões que engendra estão, em geral, na raiz das políticas populistas e acabam por paralisar o crescimento;
3º) desigualdade elevada é quase sinônimo de privilégio de grupos com poder suficiente para não pagar impostos, monopolizar o crédito e os recursos do Estado, distorcer o aparelho produtivo, direcionando-o a satisfazer o consumo conspícuo de bens de luxo, em vez de atender as maiorias, gerando o consumismo agressivo de novos-ricos em detrimento das massas de desempregados e marginalizados, como cansamos de ver no Brasil e na América Latina;
4º) esse tipo de sociedade desequilibrada não só gera a violência da guerrilha (Colômbia) ou do crime desenfreado (Brasil) como acaba por desaguar no autoritarismo e na repressão, condições propícias à corrupção, a projetos faraônicos, a monumentais erros de política econômica ou ambiental difíceis de corrigir devido à censura, à distorção de dados, à supressão do debate e da crítica.
Este é um resumo incompleto de estudo de grande riqueza, de quase 30 páginas e abundância de referências acerca dos dados e pesquisas que apóiam as conclusões _e contendo muita coisa concreta sobre as políticas a adotar, que tive de deixar de fora. Basta, porém, como amostra de observações que parecerão familiares a nós, brasileiros, cuja experiência infelizmente confirma que, sem adequada distribuição de renda, o desenvolvimento permanece aventura precária e sempre interrompida. Agora mesmo, durante minhas férias no Brasil, pude ver como as pessoas se preocupam com a continuidade da estabilidade conquistada a duras penas. Li, nessa ocasião, artigo no qual Celso Pinto se referia aos temores de investidores estrangeiros quanto à sucessão presidencial e o encarecimento dos “spreads” que isso estaria acarretando.
Poucos se dão conta, todavia, de que se trata de consequência, mais uma vez, do desequilíbrio: uma política preocupada apenas em assegurar a estabilidade e a solidez macroeconômica, sem benefícios tangíveis e imediatos à maioria do povo, é “self-defeating”, como dizem os americanos, pois, ao revelar-se incapaz de gerar apoio popular, põe em perigo as condições para consolidar os próprios resultados desejáveis que tenta garantir.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 06/08/2000.