O famoso artigo de Monteiro Lobato sobre a exposição de Anita Malfatti virou símbolo da leitura equivocada do próprio tempo. Um homem arrojado e inovador em muito do que empreendeu _a modernização da literatura infantil, a renovação da indústria editorial, a campanha pelo petróleo_ mostrou-se opaco à importância da revolução estilística e estética que se operava em torno dele.
O destino inglório dessa crítica, assim como a advertência contida no título, servem, no entanto, para pôr-nos de sobreaviso contra o risco de repetir o erro, ao aceitar acriticamente os mitos de uma visão superficial e tendenciosa da globalização. Dessa teia de mistificação fazem parte duas imposturas que se renovam com enfadonha frequência: a do declínio do Estado-nação e a da agonia do conceito de soberania. O corolário interesseiro é, obviamente, que não temos outro remédio a não ser resignar-nos às imposições de fora, como se elas não procedessem de Estados e soberanias poderosos, mas de pretenso “deus ex machina” contra o qual nada há a fazer.
Comecemos pelo Estado. Se fosse verdade que ele começou a acabar, deveriam ser já perceptíveis os sinais da tendência. Ora, o que se vê na verdade é a proliferação incessante de Estados, uma espécie de “balcanização do planeta”, nas palavras de Pascal Boniface, diretor do Institut de Rélations Internationales et de Stratégie, de Paris. Um dos exemplos mais interessantes que ele invoca é o da Europa. Pouco depois da descoberta do Brasil e antes da consolidação das grandes monarquias territoriais centralizadas a partir do fim da Guerra dos 30 Anos, existiam no continente europeu quase 500 unidades políticas mais ou menos autônomas. Estas se haviam reduzido a cerca de 30 no início do século 19, após as guerras napoleônicas e o Congresso de Viena. No curso do século, acentua-se o movimento de concentração como resultado da unificação da Alemanha e da Itália. Todavia o século 20 inverte a tendência, com a explosão dos três grandes impérios multinacionais, o russo, o austro-húngaro e o otomano. A desagregação da URSS fez desaparecer um único conglomerado, fazendo surgir 15 Estados diversos em seu lugar. A ex-Federação Iugoslava já produziu seis novos países. Tanto num caso como no outro, as forças centrífugas persistem em querer criar Estados adicionais no Kosovo, em Montenegro, na Tchetchênia e em outras áreas do Cáucaso.
O mesmo fenômeno ocorre em âmbito planetário. Durante o século 19, o imperialismo europeu destruiu numerosos reinos e principados na Ásia e na África. Exceto no caso da independência da América Latina, a regra era a diminuição do número de unidades soberanas. A descolonização dará impulso no sentido contrário, multiplicando os Estados caribenhos, africanos e asiáticos. Há 50 anos, a ONU se inaugurava com aproximadamente meia centena de países, em meio aos quais a América Latina fazia figura de confortável maioria. Hoje esse número é quase quatro vezes maior. Fracassaram invariavelmente todas as tentativas de agrupar os descolonizados em federações, como as das Índias Ocidentais (no Caribe) e na África Ocidental, Central ou Oriental, ou a união federal de Cingapura e Malásia. A “jóia da Coroa britânica” primeiro fragmentou-se em Índia e Paquistão, este último dando origem posteriormente ao Bangladesh. Só houve ressoldagem nas divisões artificialmente provocadas pela Guerra Fria (Alemanha, Vietnã) ou pelo imperialismo (Hong Kong, Macau). Em compensação, Moldova, que se esperava voltasse ao seio da Romênia, preferiu a independência, da mesma forma que a Eslováquia decidiu separar-se dos tchecos.
Com isso, atingimos 200 Estados, dos quais a imensa maioria, 150, viu a luz no século 20, parcela substancial em plena era da globalização. Parafraseando a carta de Mark Twain sobre a publicação do seu prematuro necrológico, pode-se dizer que a notícia da morte do Estado foi enormemente exagerada. É verdade, como lembra Hobsbawm, que três de cada quatro habitantes do planeta, 75% do total, vivem em 25 países de 50 milhões de indivíduos ou mais cada. E a diversidade não cessa de aumentar entre os países. Num dos extremos encontramos superestados com poder decisivo em todos os tabuleiros (os EUA), dois dinossauros que reúnem mais de um terço da população do globo (China e Índia) ou os cinco países-monstros, dotados de território continental e mais de 200 milhões de habitantes (os três citados acima mais a Rússia e o Brasil). No outro extremo, estão os microestados, que sobrevivem como paraísos fiscais ou de emitir selos e alugar o nome à Internet.
Ser Estado não deve ser tão mau assim. A prova é que não faltam candidatos a esse cobiçado “status”. Os que já o alcançaram nem sequer admitem abrir mão dele. Em agosto passado, estive em San Marino, onde as autoridades me disseram que nem cogitam de aderir à União Européia, pois temem ser submergidos pelos vizinhos italianos. A unificação da Europa poderia constituir argumento para temperar um pouco a proliferação de Estados se a recente Cúpula de Nice não tivesse mostrado, uma vez mais, pela quase impossibilidade de acordo sobre porcentagem de votos, que os Estados-nações europeus continuam robustos e resistentes a qualquer autodiluição na geleia geral.
É evidente que terá de impor-se um limite razoável à aplicação do princípio de autodeterminação dos povos, a principal força criadora de Estados. A razão é simples: estima-se que existam no mundo cerca de 5.000 etnias e povos distintos! Ao mesmo tempo em que se tenta desencorajar a autodeterminação, assiste-se à emergência de novo e poderoso impulso desagregador, o separatismo econômico. Como ele se relaciona com a globalização e a soberania é, porém, questão que fica para o próximo artigo.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 14/01/2001.