Samuel Johnson é desses autores cujo destino ingrato foi o de serem lembrados mais pela conversa espirituosa que pelos escritos sérios. Suas frases tornaram-se, depois das de Shakespeare, as mais citadas em inglês.

Foi Johnson quem disse que nada concentra melhor a inteligência de alguém do que saber que vai ser enforcado dentro de poucos dias. A frase vem a calhar para explicar a súbita preocupação no Brasil com a precariedade do comércio exterior.

O problema já estava presente há algum tempo, mas foram dois episódios equivalentes à ameaça do enforcamento _os déficits comerciais explosivos e a iminente negociação da Associação de Livre Comércio das Américas (Alca)_ que de repente detonaram o intenso debate público sobre o assunto. Portanto, mesmo que não conduza a grande coisa, a proposta da Alca já serviu para permitir o início de mobilização da sociedade brasileira em torno de um dos seus problemas.

O primeiro passo para a mobilização é a tomada de consciência que se vai processando entre nós de que a vulnerabilidade do setor externo não se resolve com desvalorizações da moeda ou manipulações do câmbio.

Em sua raiz, encontra-se questão mais grave, a do atraso considerável de passar da fase inicial da estabilização _a introdução da nova moeda e a redução da inflação graças à âncora cambial_ à etapa seguinte, de equilíbrio estrutural do orçamento e expansão não-inflacionária da economia a taxas capazes de criar emprego e eliminar a pobreza.

Não era fácil gerar confiança na moeda nova, após o fracasso de oito planos econômicos. Se ainda assim, a moeda teve êxito instantâneo, não foi por milagre. O povo é que foi o fator determinante. Povo tratado não como massa amorfa de indivíduos, mas como conjunto de cidadãos conscientes, respeitados no seu direito a informações claras e completas. A informação levou à convicção e esta à mobilização em favor da estabilidade.

O que veio depois é bem conhecido. Em lugar de continuar a canalizar a força popular para completar as reformas, inclusive as sociais, preferiu-se recorrer exclusivamente ao sistema político-partidário formal. Este, apesar de avanços aqui e ali, não manteve o impulso inicial.

O método tradicional da conciliação das elites não foi capaz de conservar o ritmo das primeiras mudanças. Corremos de novo o risco de nos atolarmos nos lamaçais da inércia. Com um projeto nacional mutilado e reduzido apenas a um dos seus componentes, a frágil estabilidade, não temos como seguir o exemplo do Chile, na autoconfiança com que esse país afronta a integração hemisférica.

Posso enganar-me, mas nessa matéria na qual o teste definitivo é a realidade, os resultados concretos até agora não justificam maiores esperanças.

Ainda é tempo de mudar de estrada e para isso é útil ter de reagir a interpelações como a da Alca. Nesse sentido, o governo e o Itamaraty estão certos em insistir na consolidação e ampliação do Mercosul como base mais forte para negociar, se não de igual para igual, ao menos de forma menos desigual. Fazem bem igualmente em não ter medo da negociação, desde que esta se disponha de fato a descascar o espinhoso abacaxi dos obstáculos mais irredutíveis ao acesso ao mercado americano: os produtos sensíveis, bem como o uso e o abuso de medidas antidumping e de taxas contra subsídio imaginários.

A atitude é correta por possibilitar enfrentar no mínimo um dos dois perigos de situações desse tipo, que é a tentação do adiamento. Adiar, ganhar tempo, só tem sentido se fizermos algo de proveitoso com o tempo ganho. Durante a Rodada Uruguai, por duas vezes nos beneficiamos fugazmente com o alívio da interrupção das negociações. Como não aproveitamos esse tempo para melhor nos prepararmos, isso de pouco nos adiantou. Como disse um pensador americano, o adiamento pode ser a forma mais disfarçada e grave de negação da realidade. Se não for hoje a pressão dos EUA, será amanhã a da China, do Sudeste da Ásia, da globalização. Cedo ou tarde, teremos de abandonar o hábito nacional de empurrar com a barriga e começar a fazer face à competição.

Mas dispor-se a negociar não quer dizer aceitar passivamente o formato e o ritmo propostos, pois isso equivaleria, no fundo, a entregar o jogo antes que soasse o apito inicial. Não é à toa que o fim das guerras coloniais da Indochina e da Algéria foi precedido de meses de negociação sobre o formato da mesa.

Uma vez, porém, definidas essas precondições, como se vem fazendo, resta outro perigo: o de aceitar resultado desequilibrado, como seria, por exemplo, a de nos resignarmos a avanços apenas incipientes e graduais nos temas de nosso interesse, submetendo-nos a compromissos e prazos muito mais exigentes nos itens de interesse alheio.

O risco não é fantasioso nem exagerado. Foi isso que aconteceu precisamente na Rodada Uruguai, onde acabamos aceitando obrigações rigorosas e definidas em prazos curtos em propriedade intelectual, investimento, serviços, manufaturas, em troca de tímidos progressos em agricultura e a promessa de que se avançaria mais nessa área após o ano 2000.

Agora, os desenvolvidos já propõem a Rodada do Milênio, na qual nos pedirão certamente mais concessões em produtos industriais como novo e duplo pagamento do que já tínhamos comprado e pago: progresso em agricultura.

Enfim, como dizia Gustavo Corção, repetindo a sabedoria do povo, ”quem pensa não casa”, mas também ”quem casa não pensa”. Pois, nas grandes decisões, após a reflexão, é preciso dar um salto com coragem. Negociar alianças com os muito poderosos é sempre empresa delicada. Todo o cuidado é pouco para evitar que se aplique a nós a anedota da Guerra Fria narrada pelo general Vernon Walters em suas memórias.

A fim de demonstrar a base biológica da coexistência pacífica e da ”détente”, os soviéticos levaram um visitante ocidental ao zoológico de Moscou para apresentar-lhe a última conquista dos cientistas da URSS: uma jaula especial onde conviviam um feroz urso polar e um cordeirinho. Maravilhado, o visitante atreveu-se afinal a perguntar se não havia de vez em quando algum acidente a lamentar naquela convivência exemplar. ”_Nenhum_” lhe responderam ”_exceto, é claro, que toda manhã temos de colocar na jaula um cordeirinho novo_”…

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 03/05/97.