Acho que foi em “A Descoberta do Outro” que Gustavo Corção, hoje injustamente esquecido, comparava as hesitações da conversão religiosa ao vacilante estado de ânimo do noivo em véspera de casamento. Seu ponto era que a reflexão não deve ser nem demais nem de menos, para não paralisar ou precipitar a decisão.
Um dilema parecido é o do Brasil diante de uma decisão que pode, para o bem ou para o mal, determinar o seu destino: a de fazer ou não parte da Área de Livre Comércio das Américas, ou Alca.
O noivo vacila por dois tipos de razões. De um lado, as incertezas materiais: emprego duvidoso, salário baixo, falta de lugar onde morar.
Do outro, há as inconstantes razões do coração: o amor será eterno ou infinito? A escolhida é mesmo a definitiva? E a estabilidade da vida em comum compensaria a perda da liberdade de escolher outros destinos?
O problema brasileiro é mais ou menos do mesmo gênero. Primeiro, é preciso saber se temos cacife, condições materiais para bancar a integração _já não direi com nossos vizinhos, mas com a economia mais poderosa do mundo.
Em seguida, se respondermos afirmativamente, temos de indagar se é isso que queremos, se é esse o sonho que sonhamos para o Brasil do futuro.
Não são questões triviais, das que podem ser liquidadas em dias ou semanas. Exigem tempo em dois sentidos. Tempo para ponderar com calma os prós e contras. E tempo de preparação para criar ou melhorar as condições objetivas.
Comecemos, portanto, por estas últimas. Será que temos condições de estabilidade macroeconômica comparáveis, não às dos EUA, mas às do Chile e talvez alguns outros, por exemplo?
É óbvio que não. Nosso programa de estabilização está no seu começo e sua base é precária. Não resolvemos em definitivo nem o desequilíbrio do orçamento nem o do balanço de pagamentos. Em consequência, a estabilidade continua refém de uma taxa de juros inibidora de investimentos de longo prazo e de uma taxa de câmbio irrealista, que agrava os déficits da balança de comércio e da de pagamentos.
A situação macroeconômica atrasa, por outro lado, a remoção dos engarrafamentos da infra-estrutura: portos anacrônicos, ferrovias moribundas, rodovias decadentes, energia insuficiente, telecomunicações e serviços em geral dispendiosos e de péssima qualidade.
Esses fatores seriam, por si sós, suficientes para prejudicar nossa capacidade de competir. Mas, como se isso não bastasse, as carências estruturais tornam mais difícil resolver outro problema: atrair investimentos, a fim de expandir e diversificar o nosso potencial exportador.
O último grande ciclo de investimentos produtivos no Brasil se esgotou no fim dos anos 70 e início dos 80. A concentração em projetos intensivos em capital possibilitou, sem dúvida, quase completar a infra-estrutura industrial básica. A energia de Itaipu e Tucuruí, a petroquímica, a siderurgia, o minério de Carajás, o papel e a celulose, o suco de laranja, o complexo soja são conquistas econômicas indiscutíveis.
Infelizmente, porém, em termos de exportação, tais setores não oferecem muito em valor agregado e, o que é mais grave, não figuram dentre os itens de crescimento mais dinâmico do comércio mundial dos últimos 15 anos, como transparece das estatísticas da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento _Unctad_ divulgadas entre nós por Marcos Pratini de Moraes.
É evidente que, sem renegar o passado, temos de dar um passo à frente. Indo além das limitações materiais, precisamos perguntar o que desejamos ser, qual é o nosso projeto, nosso sonho de Brasil para o próximo século.
A fim de eliminar a pobreza e reduzir a desigualdade, devemos formular uma estratégia de competitividade industrial e comércio exterior que nos poupe, desta vez, de insucessos como o da política de informática.
Mas quem, no governo, que setor dispõe de quadros e instituições para tal tarefa? Isso e os problemas não resolvidos na base macroeconômica e na infra-estrutura transcendem os poderes do Executivo. Dependem, no fundo, da mobilização da sociedade _e o governo parece favorecer uma estratégia desmobilizadora_, do Congresso, dos governadores, dos sindicatos e empresários.
Essas coisas levam tempo. Acontece, porém, que já estamos de casamento marcado para o ano 2005, pois essa é a data escolhida para o início do funcionamento da Alca. Será possível concluir os preparativos em sete anos? E a União _facilitará ou tornará mais difícil alcançarmos os objetivos em benefício do nosso povo?
São essas as perguntas que devem orientar o debate sobre as condições e prazos da negociação da Alca.
Um tratado de livre comércio é como um contrato de casamento. Já dizia o samba: “Terminam nossas aventuras, chega de tanta procura”. Após lembrar que “está chegando o momento de irmos pro altar nós dois”, o filósofo popular Angenor de Oliveira, o mestre Cartola, advertia: “Mas, antes da cerimônia, devemos pensar _e depois?”
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 26/04/97.