Quanto mais profunda é a mudança, mais importante é não se enganar sobre sua verdadeira natureza, a fim de não ser atropelado pelos acontecimentos. Ao terminar a Segunda Guerra Mundial, o Brasil não percebeu bem o que tinha mudado. Iludiu-se sobre a “relação especial” que fantasiava ter estabelecido com os EUA durante a guerra. Esperava, em recompensa, ajuda econômica significativa para financiar o desenvolvimento. De sobra, acreditava que os americanos tinham interesse em assegurar sua superioridade não só econômica mas militar sobre a Argentina, cujo comportamento em relação aos aliados tinha sido dúbio, na melhor das hipóteses.
Acontece que as circunstâncias eram outras. Washington não precisava mais das bases do Nordeste para invadir a África do Norte. Nem da borracha da Fordlândia e de outras matérias-primas. Ou do apoio, real ou simbólico, da Força Expedicionária. A guerra agora era fria, contra a União Soviética e seu instrumento, o comunismo internacional. O dinheiro disponível seria canalizado ao Plano Marshall, à reconstrução da Europa e do Japão, aos países ameaçados porque situados na linha de frente.
Começou então interminável diálogo de surdos. A América Latina reclamava um Plano Marshall para desenvolver o continente e eliminar a miséria, caldo de cultura do comunismo. Os EUA contestavam que o desenvolvimento deveria ser o produto da economia de mercado (não dos governos) e o financiamento viria do capital privado, inclusive estrangeiro, atraído por condições favoráveis. Os latino-americanos teriam de combater a subversão comunista no seu próprio interesse, sem esperar nada em troca.
No clima polarizado e radicalizado da Guerra Fria, não havia, de fato, escolha. Getúlio Vargas tinha praticado seu “jogo pendular”, entre alemães e americanos, aproveitando o que os marxistas chamavam de “rivalidades intra-imperialistas”, enquanto havia tensão, mas não guerra aberta. Após 1947, não existia credibilidade nenhuma em acenar com um impossível alinhamento com a URSS. Sobretudo para um governo como o de Dutra, mais papista que o papa, que rompera as relações com Moscou para espanto dos ocidentais, chocados com o exagero.
O mal-entendido não se dissipou nem mesmo com a Aliança para o Progresso de Kennedy, em boa parte provocada pelo terror oriundo da Revolução Cubana. Para os latinos, a Aliança não se interessava muito pela energia, os transportes ou o setor produtivo, e só queria investir em educação, saúde, saneamento, coisas meritórias que não alteravam a estrutura econômica. Como se vê, as posições americanas não evoluíram muito. O que mudou foi a América Latina.
Após a crise da dívida dos 80, os latino-americanos aceitaram as teses de Washington e trocaram os recursos públicos pela dependência dos fluxos financeiros privados. O que pedem agora não é um Plano Marshall para desenvolver a economia, mas socorro dos EUA ou FMI para poder continuar a rolar a dívida com os mercados privados.
Evoquei esse passado não tão remoto, mas já meio esquecido, não para insinuar que enfrentamos situação similar. Semelhanças certamente existem e a principal é a índole da configuração internacional emergente. Apesar da frase do presidente Bush, de que se tratava da primeira guerra do século 21, o melhor é evitar palavra de conotação semântica tão precisa como essa. Guerra “quente” é confronto bélico violento, com extensa destruição de vidas e propriedades dos dois lados, bloqueio, valorização de matérias-primas, reconversão maciça da indústria para produzir armamentos. O que temos aqui é mais limitado. Ainda em hipótese incerta de que as operações não se restrinjam aos talebans e envolvam algum outro país, ninguém imagina que, por conta disso, a General Motors pare de produzir carros para passar a fabricar aviões.
Conforme diz o secretário da Defesa, Rumsfeld, o que vamos ter é algo parecido à Guerra Fria: confronto prolongado, anti-subversivo, com operações bélicas ocasionais, mas, acima de tudo, campanha de pressão e dissuasão contra os países recalcitrantes. Complementada por recompensas, ajudas financeiras às nações situadas na zona de conflito, Paquistão, Índia, Turquia, árabes e muçulmanos em geral. Lembra a outra Guerra Fria ao menos em um ponto: a América Latina, o Brasil não estão na linha de fogo nem têm muito a aportar à coalizão, isto é, não constituem área de interesse prioritário. O que não é novidade, pois apenas prolonga a situação anterior de meio século de Guerra Fria. Nem é necessariamente mau, já que há muito tempo nos desembaraçamos da ilusão de uma salvação vinda de fora, por meio de recursos oficiais dos EUA, do FMI ou de mais endividamento privado.
O mínimo que temos direito de esperar é que, na sua perversidade irracional, os mercados não ajam conosco como fazem os terroristas, transformando-nos em vítimas inocentes, só porque de repente perderam o apetite pelo risco. Nessa hipótese extrema, que espero não aconteça com o Brasil, os governos, a começar pelo dos EUA, teriam de suprir a falha dos mercados, assegurando-nos a mesma liquidez que garantiram ao sistema financeiro mundial após os atentados e pela mesma razão: a fim de evitar um risco sistêmico. Só nos resta concluir com um fervoroso “oxalá”, que, como sabem os leitores, vem do árabe e significa “que Deus assim o queira”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 21/10/2001.