“A hora de maior segregação da vida americana ocorre na manhã do domingo.” A frase do discurso de Barack Obama sobre raça se refere a uma das mais profundas divisões do cotidiano nos EUA: a radical separação de negros e brancos no culto religioso.

Lembrei-me das eleições de 1976, quando eu dirigia o setor político da Embaixada do Brasil em Washington. Na cidadezinha de Plains, Geórgia, o ramo branco e o negro da Igreja Batista, à qual pertencia Jimmy Carter, haviam-se unido durante a campanha, mas voltaram a se separar, tão logo passada a eleição.

Diante do clamor contra a suposta manobra eleitoreira, um humilde diácono da igreja branca explicou que não era nada disso. A tentativa de integração tinha sido sincera, mas fracassara: “Nós, brancos, vamos à igreja para ouvir o sermão do pastor, cantar alguns hinos, orar e, uma hora depois, voltamos para casa. Os negros, não. Cantam, dançam, batem palmas, gritam, ficam três, quatro horas se abraçando, chorando e rindo”. E concluía: “We just can’t worship together” (“Simplesmente, não podemos adorar a Deus juntos”).

Sem ponta de sofisticação intelectual, esse homem estava dizendo que, num dos elementos definidores de qualquer cultura -a forma de rezar-, brancos e negros pertenciam como que a dois povos distintos.

Antes que o leitor comece a sentir aquele gostinho de superioridade em matéria de raça que curtimos em relação aos americanos, é bom lembrar as igrejas evangélicas de nossas periferias. A razão pode ser outra, mas esse tipo de culto evangélico é tão contrastante com o catolicismo quanto com o protestantismo de presbiterianos, metodistas ou luteranos de classe média.
No caso americano, 32 anos depois do incidente da campanha de Carter, as duas culturas seguem separadas na expressão religiosa e o tema continua explosivo como antes. A prova foi o golpe de difundir na internet sermões nos quais o pastor Jeremiah Wright, da igreja freqüentada por Obama, exclamava: “Deus amaldiçoe a América!”.

O candidato não se intimidou.

Reagiu com soberbo discurso, excepcional na forma e no conteúdo.
Alguns o compararam a textos de Lincoln e Roosevelt. Há trechos antológicos, como os que descrevem as igrejas negras e o primeiro culto de Obama, no qual ele mistura as histórias da Bíblia com as dos negros americanos.

Obama condena as palavras do pastor, mas se recusa a atraiçoá-lo: “Não posso renegá-lo, da mesma forma que não posso renegar a comunidade negra”. Rejeita a opinião de que o racismo branco seja endêmico e estático, que o país não possa mudar.

Mostra que a maioria dos brancos pobres e de classe média não se sente privilegiada pela raça. A manipulação racista desvia a atenção dos verdadeiros culpados: um sistema dominado por lobistas e interesses especiais; políticas econômicas que favorecem poucos em prejuízo de muitos; uma cultura empresarial podre de práticas questionáveis e cobiça de curto prazo.

Sua ambição, talvez excessiva, é superar as divisões raciais para enfrentar os problemas que afetam todos: escolas em ruínas, falta de seguro médico, economia em crise, a guerra do Iraque. Pode não dar certo, mas o discurso revelou um líder de verdade, lúcido e compassivo.

Seu sopro histórico marca um excepcional momento de coragem e reflexão no debate político americano.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 30/03/2008.