Contou-me um amigo que, ao empreender a tradicional viagem de estudos da Escola Superior de Guerra, os estagiários recebiam grosso volume que lhes programava a vida nos mínimos pormenores e quase minuto a minuto. Após três semanas de total condicionamento, a página relativa ao retorno continha duas anotações apenas: 16h47 _aterrissagem no Galeão; 16h48 _retomada da iniciativa individual.
Em face dos últimos acontecimentos na Argentina, nos Estados Unidos e no mundo, pergunto-me se não seria hora para o Brasil começar a cogitar de retomar a iniciativa individual em termos de estratégia externa.
Meses atrás, alertei em entrevista para o erro de subestimar a criatividade e a audácia do ministro Cavallo. Desde então, a suspensão das tarifas de importação para bens de capital, a elevação dos gravames para produtos de consumo e as recentes medidas cambiais para o comércio exterior equivalem a uma “desvalorização branca”. Junto dos incentivos da Lei de Competitividade, constituem tentativa heterodoxa, soberana em relação ao FMI e ao temor paralisante dos “mercados”, no sentido de romper a inexorável sufocação pela camisa-de-força do câmbio.
Se darão certo, não sei. Tomara que sim, em razão não só de nossa solidariedade como de auto-interesse. A jogada é de alto risco, devido ao aumento dos juros da dívida argentina, mas ninguém pode negar-lhe o mérito da ação e da rapidez para tentar evitar o pior. Quem se atreveria a preferir a passiva obstinação com que nos aferramos a uma política cambial insustentável até sermos atropelados pela crise de 98-99? O que mostra que, se agir comporta riscos, esses nem sempre são menores na inércia, no medo de fazer.
Compreende-se que haja entre nós preocupações justificadas pelas perdas do comércio exterior brasileiro e o contágio dos mercados financeiros, sem mencionar as irritações epidêmicas provocadas por personalidade afirmativa como a do ministro. Seria pena, porém, se a isso se limitasse a reação. Não haverá algo a aprender do exemplo? Não existiria acaso necessidade comparável de lei ou política de competitividade para o Brasil, não como resposta à Argentina, mas em razão de nossos próprios problemas? Como é possível que, num par de meses, um homem decidido redesenhe a estratégia econômica externa do país vizinho e redefina em substância a própria natureza do Mercosul enquanto continuamos sem reforma tributária ou política de competitividade, passados mais de dois anos da desvalorização?
Da mesma forma que o ministro Cavallo usa a inteligência e o poder de iniciativa para reequilibrar (não se sabe se temporária ou permanentemente) a estrutura do Mercosul em função dos interesses e necessidades da Argentina, a milhas de distância os americanos buscam utilizar também a iniciativa para reorganizar o mercado internacional do aço. Interrogado sobre a aparente contradição entre essas medidas e o discurso do livre comércio, o homem-chave dos EUA no comércio mundial, Robert Zoellick, declarou: “É útil aos demais países reconhecer que, embora desejemos promover a liberalização, teremos de lidar com questões como a do aço, que afetam todas as nossas economias”, acrescentando que os EUA “tomarão conta dos nossos” (quer dizer, os deles) “próprios interesses”.
Em outras palavras e sem que vá nisso qualquer intenção malévola, é o que o premiê Vittorio Emanuele Orlando afirmava ao final da Grande Guerra: num mundo de soberanias, o que em última análise guia os países é “il sacro egoismo”. Oitenta anos depois, a situação não mudou muito.
Sempre achei basicamente correta a estratégia de privilegiar a consolidação das relações econômicas com os vizinhos do Sul e de estendê-las ao conjunto da América meridional. Caso não se exija delas o que não podem dar, como pretende a ingênua e irrealista tese geopolítica do contrapeso aos EUA, são idéias úteis em termos de interconexão da infra-estrutura física e de integração energética e comercial. Sua validez permanece intacta no atacado, mas talvez tenham de sofrer ajustes no varejo, à luz do que se passa perto ou longe de nós. A política externa tem sido inovadora e flexível na condução dessas prioridades, como se viu na ênfase dada à Venezuela, no interesse de chegar a acordo com os andinos, mais evidente no caso do Brasil do que no sul do continente, no esforço de acomodar os interesses do Chile. Merecem aplauso também a firmeza em manter o prazo da Alca, a franqueza do discurso em Québec.
Imagino que esteja agora em curso uma reavaliação do conjunto de nossas opções externas. É exercício que não pode ser dissociado do objetivo de melhorar rápida e substancialmente a competitividade das exportações, sem o qual fica difícil ampliar o leque das opções “tous azimuts”, em todas as direções. O ideal é sempre diversificar ao máximo os mercados, evitando a excessiva concentração ou perigosa dependência em relação a um parceiro ou arranjo regional. Exemplo interessante é o do México, cuja participação central no Nafta não lhe impede de buscar reduzir a dependência, mediante a multiplicação simultânea de acordos com os mais diversos parceiros. Consegue assim até deslocar produtos brasileiros, como ocorre com o suco de laranja na Europa. É preciso, portanto, recuperar algo da capacidade unilateral de tomar a iniciativa, quem sabe entorpecida por entraves regionais que aparentemente inibem mais a nós do que a outros. Se assim for, não se deveria talvez recorrer ao mesmo uso criativo da linguagem para, como sugeria, em contexto distinto, o saudoso chanceler peruano Garcia Bedoya, “plantear un repliegue estratégico”? Não traduzo nem explico porque todo mundo sabe o que quer dizer.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 24/06/2001.