”Um soluço, nada mais.” Foi assim que Jim Wolfenson, presidente do Banco Mundial, descartou a crise asiática, por ocasião da reunião do FMI e do Banco em Hong Kong. Mais prudente, Michel Camdessus, diretor do fundo, preferiu limitar-se ao que era então consenso geral: Hong Kong, devido à solidez básica de sua economia, não corria perigo.
Um mês e meio depois, os acontecimentos desmentiram tanto um como o outro. A crise já se revelou muito mais resistente e ameaçadora que a mexicana de dois anos atrás. Não é só em durabilidade que ela desafia os prognósticos. O mesmo ocorre em matéria de raio de expansão, que cada vez se amplia mais.
Mexicana de início, a crise de 94-95 tornou-se depois no máximo latino-americana, com algum efeito amortecido na Ásia. A rigor só dois países, México e Argentina, sofreram, em consequência, uma contração violenta da economia. A operação de socorro montada pelo FMI e pelo governo dos Estados Unidos foi também muito mais rápida e eficaz.
As coisas parecem agora consideravelmente mais complicadas. Pela primeira vez uma crise deflagrada num país em desenvolvimento se propaga às Bolsas do Japão, dos EUA e da Europa. Um abismo separa as necessidades astronômicas dos asiáticos dos recursos disponíveis no FMI e nos grandes centros financeiros. Também afetado, o Japão não pode repetir em relação a seus vizinhos o papel desempenhado pelos americanos no México.
É cedo ainda para estimar o impacto destrutivo que os problemas da Ásia terão nas perspectivas de crescimento da economia e do comércio mundiais. Desde já, as desvalorizações de moedas em cadeia, às vezes de 25%, vão distorcer todo o panorama comercial da região, com ganhos apreciáveis para as exportações do Sudeste e perdas para as do Japão, Estados Unidos e Europa.
Uma vez mais se repete o padrão mexicano. Nos países em desenvolvimento, uma crise de moeda contagia a Bolsa e vice-versa. Nas economias avançadas, a tendência é confinar a turbulência a um ou outro setor. A explicação não é difícil: quando a presença estrangeira nos mercados financeiros é acentuada, o controle torna-se muito mais precário. É o preço que se paga pela excessiva dependência de recursos financeiros de fora.
É em parte por isso que o susto pregado esta semana por Wall Street teve características diversas. Embora detonada por Hong Kong, a queda de cotações foi provocada por razões próprias. Uma economia que cresce a 3% ao ano, com a lucratividade das empresas melhorando no máximo a 10% ao ano, não pode indefinidamente sustentar valorizações de ações entre 30% e 40% anuais. Cedo ou tarde a correção é inevitável.
Já faz quase um ano que o presidente do Fed, Alan Greenspan, chamou isso de exuberância irracional. Mas, em realidade, irracional não é a exuberância, mas o próprio sistema que transforma a economia num cassino.
No passado, os fluxos internacionais de recursos financiavam o comércio e os investimentos, guardando, portanto, uma ligação estreita com a produção, a economia real. Hoje a explosão financeira potencializada pelas telecomunicações e a informática só conserva uma relação parcial com o mundo concreto da produção. De longe a maioria das transações é especulação pura e simples com moeda e câmbio. As finanças se desvincularam a tal ponto do investimento que relativamente pouco dinheiro vai para o chamado investimento ”greenfield”, isto é, a construção de novas fábricas, novas unidades de produção. Quase tudo é destinado às fusões e aquisições, a transações em haveres de segunda mão, que não geram emprego e são, ao contrário, acompanhadas por demissões maciças.
Esse fenômeno em termos internacionais são reproduzidos, no interior de alguns países em desenvolvimento, pela assustadora expansão das aplicações em títulos da dívida. Nações como o Brasil e a Turquia, até recentemente quase sem dívida pública interna, em poucos anos se endividaram em até 30% ou 40% do PIB. O financiamento dessa dívida engole a poupança dos particulares que, em condições normais, deveria ser investida no aumento da produção e do emprego. O pior é que, com esse dinheiro, raramente o governo gera investimento. Boa parte é usada para o custeio de gastos correntes ou, num círculo vicioso, para pagar os juros da dívida. Como esses são elevados a fim de continuar a atrair investidores de fora e de dentro, países como o nosso acabam por gastar de 5% a 6% do PIB com o serviço da dívida, em contraste com os 2% a 3% nas nações industrializadas. O resultado é agravar ainda mais a concentração de renda, pois os poucos a pagar impostos, em geral os assalariados, transferem recursos ao Estado para enriquecer os aplicadores em títulos da dívida.
Depois do capitalismo mercantilista e do industrial, chegamos finalmente à era do capital financeiro de que tanto falaram os escritores marxistas no fim do século passado e do começo deste. Surge com força uma classe de especuladores e ”rentistas”, obcecados pelas arbitragens, os ataques a moedas, o ganho espetacular seguido por retirada rápida, a aplicação estéril em dívida governamental de baixo risco.
É a usura contra a natureza, que indignava Ezra Pound nos ”Cantos”. É o risco do jogo contra a estabilidade do trabalho. É difícil crer que algo de bom há de brotar dos miasmas desse pântano. A não ser que se dê ouvido ao padre Antonio Vieira e se compreenda que o remédio não é aumentar a fazenda mas sim encurtar a cobiça.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 01/11/1997.