Este estranho título foi a manchete da primeira página de um dos principais jornais de Bancoc na quarta-feira: “Três toneladas de fome causam destruição na cidade”. A história é igualmente curiosa. Um elefante macho, trabalhador, como se diz aqui, foi deixado sem comer pelo dono e saiu desembestado, destruindo tudo à sua frente. A foto mostra o elefante e, correndo atrás, o veterinário que logrou finalmente adormecê-lo com doses maciças de soporífero.
Além do pitoresco de uma cidade moderna com elefantes perambulando pelas ruas, o evento contém uma parábola para os nossos tempos. A fome ou o medo dela faz com que o lado animal, biológico que há em nós nos leve a descer à rua para quebrar e destruir. É esse tipo de sentimento que está na raiz do crescente movimento de protesto em Seattle, Davos e até em Bancoc.

Na conferência da Unctad, discutiu-se muito esse mal-estar generalizado com a economia global. Somavía, o secretário-geral da Organização Internacional do Trabalho, lembrou o filme belga “Rosette”, história triste de uma jovem de 18 anos que passa da desventura à exploração, repetindo o tempo todo: “Eu só queria um trabalho normal”. Citou também “Ou Tudo ou Nada”, no qual o personagem, ao perder o emprego, não tem a coragem de contar a verdade à mulher, que está planejando passar férias em Mallorca.

Evoquei, de minha parte, o que dizia, após as revoluções de 1848, o filósofo radical russo Alexander Herzen. Já então ele profetizava como as utopias não hesitariam em sacrificar milhões de pessoas em nome da sociedade perfeita que desejavam criar. E comentava: “Toda meta infinitamente remota não é meta, mas sim um engodo; a meta deve ser próxima, estar à mão, pelo menos o salário do trabalhador ou a satisfação do trabalho bem-feito”.

Ora, até isso, que na época soava modesto, parece hoje duvidoso. Quem pode garantir um emprego decente a todo indivíduo disposto a trabalhar?
Como foi que chegamos a esse ponto? Uma das explicações é o poder incontrastável que a globalização deu ao capital. Conforme tem mostrado Robert Reich, o antigo ministro do Trabalho de Clinton, até pouco tempo atrás as empresas tinham um senso de responsabilidade moral perante seus empregados e a comunidade local. Mesmo em épocas difíceis, pensavam duas vezes antes de despedir. Caso inevitável, tentavam amortecer o golpe, ajudavam a reciclar os trabalhadores, voltavam a contratá-los tão logo as coisas melhorassem.

Tudo mudou com a possibilidade de transferir as fábricas para países de mão-de-obra barata. Se não conseguem salários baixos ou a flexibilidade de despedir, os empresários simplesmente se mudam e continuam a importar os produtos dos novos locais. O mesmo sucede com os impostos: não podendo taxar o capital, que ameaça buscar paraísos fiscais, os governos não têm outro remédio a não ser carregar sobre os assalariados.

Seria impensável, em nossos dias, um empresário global seguir o exemplo de Ford, que decidiu pagar o dobro do salário dos competidores, a fim de que seus operários pudessem comprar os carros que fabricavam.

Diante disso, de novo escutamos que nada há a fazer: a globalização é inelutável e irreversível porque é impulsionada pela mudança tecnológica. O curioso é que dizem isso justamente os que até ontem denunciavam o determinismo do materialismo histórico. Vencido o marxismo, recolhem sua herança intelectual e, sem o saber, passam a afirmar a mesma coisa: as descobertas tecnológicas alteram a estrutura produtiva e esta determina todo o resto de modo irreversível.

Ou melhor, até que um cataclismo político como a Guerra de 14 e as irrupções do fascismo e do comunismo faça tudo voltar para trás. Comunistas não há mais, só ex-comunistas aboletados no poder um pouco por toda a parte. Neofascistas, porém, pululam e, desaparecida a opção de esquerda, começam a oferecer aos insatisfeitos a ilusão de uma alternativa ao que está aí.

Como explicar de outra maneira a (ir)resistível ascensão do neofascismo na Europa e alhures? Ensinam-nos os livros de história que os fascistas subiram ao poder por quatro razões básicas: a ameaça bolchevista, o impacto da hiperinflação dos anos 20, o desemprego maciço dos 30 e a pauperização da classe média. Essas causas históricas já não estão presentes (o próprio desemprego é na Europa atenuado pelo seguro-desemprego e, paradoxalmente, é mais baixo em países onde a extrema direita é forte). Sem embargo, o fenômeno cresce e começa a assustar. Não será porque o medo do futuro, a angústia de perder o emprego devido à deslocalização das indústrias ou por haver algum imigrante disposto a trabalhar por menos levam as pessoas a sonhar com alguma reencarnação de Mussolini ou Hitler?

Se assim é, seria bom, enquanto é tempo, pensar em devolver à economia mundial o que ela perdeu com a globalização: o conceito de interdependência. Isto é, o elemento de mutualidade de interesses. Estamos todos unidos por esse vínculo, a empresa a seus trabalhadores e à comunidade, os produtores aos consumidores, dentro de cada país. Em nível internacional, os países em desenvolvimento dependem para crescer do ritmo de expansão da economia dos ricos e da sua demanda por importações. A recíproca, no entanto, é também verdadeira. A fim de poder exportar tecnologia, bens de capital, artigos de luxo, os ricos têm de abrir os próprios mercados para que os pobres tenham com que pagar suas importações. Do contrário, estes terão de fazê-lo com o endividamento, o qual, após certo ponto, explode em crises.

Moral desta parábola: fome se combate com comida, medo de perder o emprego, com crescimento e solidariedade. Como fez Milton Campos, governador de Minas, quando lhe vieram dizer que trabalhadores desesperados com atraso de pagamento ameaçavam uma manifestação. “Enviamos os carros de assalto da polícia, governador?” Responde Milton Campos com a sabedoria do bom senso: “Não seria melhor enviar o carro-pagador?”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 20/02/2000.