Desde Tocqueville deixou de ser novidade comentar a originalidade das instituições norte-americanas, do ”american way-of-life”, das diferenças de gosto que fazem até dos esportes populares como o ”baseball” algo de incompreensível para os não nascidos nos Estados Unidos.

Essa ”singularidade” acaba de inspirar um estudo exaustivo do sociólogo Seymour Lispet. Ela é notável, por exemplo, no paradoxo de que o país a ter sofrido a menor influência do marxismo foi, ao mesmo tempo, o que imprimiu a marca mais forte num século em grande parte plasmado por essa corrente de pensamento e ação.

Estes anos conclusivos parecem confirmar que vivemos, ao menos no seu final, um ”século americano”. É o que se poderia deduzir da discrepância de desempenho, para melhor, entre a economia americana e a do resto do mundo industrializado. A acentuação recente do contraste aconselha, assim, por meio de um tratamento separado, a melhor realçar em ”chiaroscuro” o perfil que emerge da economia mundial neste ano.

A inflação nos EUA é hoje a mais baixa em 31 anos, o desemprego é o menor em 23 anos e o déficit orçamentário nunca havia encolhido tanto em 22 anos, enquanto a economia cresce sem interrupção há 70 meses.

Parece um ”happy end”, um conto de fadas: ”e foram felizes para sempre”… A ponto tal que o ”Wall Street Journal” detectou um consenso emergente: o de que finalmente teria sido amansado o bicho-papão do ciclo de negócios, isto é, a sucessão infindável de recessão e inflação, de pleno emprego e desemprego.
Em termos mais claros ainda, o ”Washington Post” afirma que a ”economia parece ter entrado em novo período de estabilidade no qual a recessão deixaria de ser inevitável e tanto a inflação como o desemprego permaneceriam relativamente baixos”.

Os mais cautelosos vêem nessa complacência o sinal amarelo do perigo. Lembram que na véspera do colapso de 1929, profecias de igual extravagância haviam sido avançadas pelos economistas mais reputados da época.

Sem chegar, portanto, ao exagero de anunciar o fim da alternância dos ciclos econômicos, o ”Financial Times” julga, mais razoavelmente, que está havendo um certo alongamento desses ciclos a partir dos anos 70. Na ”idade de ouro” do crescimento rápido, entre 1950 e 1973, as oscilações obedeciam a padrões de quatro a cinco anos de duração, (”ciclos Katchin”), fortemente influenciados pela ação anticíclica dos governos.

Nas duas últimas décadas, a duração média dessas ondas praticamente dobrou para oito a dez anos, (”ciclos Juglar”). As razões são várias: competição comercial global, menores inventários, mercados de trabalho mais flexíveis, aumento da importância relativa do setor de serviços cuja natureza se presta menos ao risco de acumulação de estoques não-vendidos, etc.

A principal, contudo, é a menor capacidade de controle das oscilações por parte dos governos em decorrência de déficits orçamentários crônicos e de níveis de endividamento que inviabilizam a política fiscal.

Como observa o jornal inglês, é como se tivéssemos voltado por outros caminhos, ao século 19, quando o setor público era pequeno demais para permitir uma política fiscal ativa e a política monetária era condicionada pelas exigências do padrão-ouro. Da mesma forma que há cem anos, os momentos de mudança do ciclo parecem ser de novo ditados por crises bancárias e colapsos do mercado.

A advertência do presidente do Fed, Alan Greenspan, contra a ”exuberância irracional” dos mercados indica que esse último perigo nada tem de fantasia. Acumulam-se indícios de expansão de uma bolha especulativa nas Bolsas, sem maior compromisso com a realidade.

O índice Dow Jones aumentou 75% desde o verão de 1994 e 25% apenas no corrente ano. Mesmo um colapso de 36%, como aconteceu entre agosto e outubro de 1987, deixaria o Dow Jones quase 2,5 vezes mais alto do que o fundo do poço atingido naquele desastre!

Isso não quer dizer que a festa não possa se prolongar por mais algum tempo. Afinal, a recessão da década de 60 durou nada menos de 106 meses. Os analistas notam, todavia, que Greenspan nunca deixou de apertar os controles nas três vezes em que alertou sobre bolhas anteriores.

O perigo é que, ao provocar o esvaziamento artificial, a bolha acabe por explodir, conforme sucedeu no Japão, é verdade que em condições diferentes, mergulhando o país em recessão da qual se debate ainda para sair.

Seja como for, a nota dissonante nesse panorama de relativa euforia é o sacrifício desproporcional infligido aos situados embaixo da escala social. Em 1995, os salários no topo da escala eram 4,4 vezes maiores do que os da base (em comparação com 3,2 vezes em 1980).

Nesse aspecto, a experiência americana é igualmente extrema e singular entre os países industrializados, para os quais a dispersão salarial se situava entre 2 e 3 vezes nos casos da Alemanha, Japão, Itália, Suécia, de 3,3 para o Reino Unido e 3,8 para o Canadá.

O aumento da desigualdade será o preço a pagar pelo crescimento sem inflação, os salários baixos serão a condição para a geração de empregos? O modelo americano seria também aqui a exceção possibilitada apenas pela singularidade dos Estados Unidos ou a regra destinada a eliminar os modelos alemão e japonês, impondo-se como a face uniforme do futuro?

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 28/12/96.