Cheguei a Nova Déli para uma visita oficial no dia do Festival de Diwala, quando todos, mesmo os mais pobres, acendem velas e luzes e a cidade é iluminada por fogos de artifício.

No caminho do aeroporto para a cidade, um dos funcionários que me receberam lembra a frase do historiador suíço Burkhardt: “A negação da diversidade está na origem da tirania”. Logo depois, um dos meus acompanhantes observa que a Índia, com 940 milhões de habitantes, tem 18 línguas oficiais, 813 dialetos e 330 milhões de deuses!

Imagino o espanto de Vasco da Gama ao mergulhar nesse universo de complexidade e ao inaugurar, 500 anos atrás, o que o historiador hindu Pannikar chamou de “era Vasco da Gama” na sua “História da Dominação Ocidental na Ásia”.

A travessia até Calicut e a viagem de Colombo ao que ele tomou pelo Japão mas era a franja da América só foram possíveis graças ao desenvolvimento da caravela, aos avanços na arte da navegação com a introdução do sextante e da bússola, aos aperfeiçoamentos da cartografia.

Isso tudo se deve, por sua vez, à revolução cultural do Renascimento e às invenções jurídicas que viabilizaram o capitalismo mercantilista. Conforme mostrou Tullio Ascarelli em suas “Sete Lições sobre o Direito Comercial”, tão ou mais importante do que as invenções mecânicas de máquinas e instrumentos foram as construções intangíveis no domínio do Direito: a letra de câmbio, que possibilitou a transferência de quantias importantes sem o risco do transporte físico do ouro pelos caminhos infestados de salteadores da época, o seguro de carga marítima, a sociedade por ações, permitindo reunir grandes capitais com a responsabilidade de cada um limitada ao valor das ações por ele subscritas.

As mesmas inovações na técnica e no Direito estão na raiz da Revolução Industrial e nos demais degraus sucessivos pelos quais avançou a tendência à globalização, cuja etapa atual é igualmente o produto dos imensos saltos ocorridos nos transportes, nas telecomunicações, na informática, abrindo o caminho à extraordinária explosão a que hoje assistimos no comércio, nos investimentos, nos fluxos financeiros, na fragmentação dos estágios de produção e sua distribuição por localizações geográficas diferentes.

Longe, portanto, de ser um fenômeno essencialmente econômico, a globalização é, antes de tudo, o resultado da cultura e das idéias. Essas forças vêm agindo há cinco séculos, com avanços contínuos e recuos temporários, no sentido de criar um espaço unificado para a ação do homem, não só no domínio dos mercados e da produção, mas sobretudo por meio da superação do isolamento e da intensificação dos contatos e da recíproca fertilização de idéias e conhecimentos entre os povos.

Além da cultura, o que determina decisivamente a possibilidade e o ritmo da globalização é o sentido das mudanças políticas. As duas guerras mundiais, a Revolução de Outubro, a ascensão do nazi-fascismo agudizaram os conflitos e impuseram um retrocesso de décadas ao progresso global. Já a queda do Muro de Berlim, a desagregação do comunismo real e a superação da divisão ideológica da Guerra Fria aumentaram o grau de convergência e impulsionaram as forças de integração.

Unificação do espaço não deve, porém, ser confundida com uniformidade. A Revolução Industrial começou na Inglaterra e aos poucos se espalhou por outros países. Mas esses não replicaram como clones o modelo inglês.

Enquanto a Inglaterra vitoriana, segura de sua superioridade competitiva, mantinha uma tarifa média de 3% a 5%, França, Alemanha e Japão protegiam suas indústrias com barreiras de 12% a 14% e os Estados Unidos, com 33%! Da mesma forma é ingênuo pensar que a atual fase da globalização irá multiplicar por toda parte miniaturas dos EUA.

Convergência de padrão e afirmação da identidade cultural são forças que interagem numa relação dialética, tornando possível a unidade na diversidade.
Quem duvida basta visitar a Índia em pleno Festival das Luzes para ver como a economia se desenvolve e moderniza sem que nenhum dos 330 milhões de deuses se sinta minimamente incomodado pela emergência do país como um dos líderes na exportação do mais sofisticado software!

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 16/11/96.