Em minha primeira viagem à Itália, fiquei perplexo na estação de Veneza, sem saber se o trem que me levaria mais depressa a Verona era o ”accelerato”, o rápido ou o expresso (a resposta certa é a última). À parte a exuberância de uma língua com a distinção de ser a única que tem superlativo de substantivo (”poltroníssima”, por exemplo), o episódio serve um pouco de imagem ao dilema do Brasil diante da variedade de propostas de integração que o embaraçam.

Durante muito tempo no passado nos contentamos com a maria-fumaça de um projeto puramente nacional, de mercado interno e substituição de importações. Quando esta começou a perder vapor, embarcamos no comboio do Mercosul, de tecnologia pouco sofisticada, mas onde temos a vantagem de viajar no lugar do maquinista.

Agora, porém, trens aerodinâmicos como a Alca _Associação de Livre Comércio das Américas_ (”made in U.S.A.”) ou o expresso multilateral da Organização Mundial de Comércio nos oferecem passagem, é verdade que em segunda classe.

É preciso escolher ou será possível fazer diversas etapas do trajeto em cada um deles? Num mundo ideal, a integração à economia global e ao sistema multilateral de comércio é, ao mesmo tempo, a mais vantajosa e a mais difícil.

Vantajosa porque em tese ganha-se acesso a todos os mercados e investidores. Difícil porque um mercado unificado em escala planetária exacerba a competição, abrindo-a a todos os competidores.

Seria assim natural que um país pudesse preparar-se para a competição global, percorrendo, uma após outra, todas as fases de uma gradual conquista da competitividade. Primeiro a integração consigo próprio, desenvolvendo e incorporando suas áreas atrasadas. Em seguida, com os vizinhos, mais parecidos em nível econômico ou tecnológico. Só depois, beneficiados pela escala, se enfrentariam os grandes. Um pouco como o clube de futebol ou a escola de samba do terceiro grupo que ainda não encontrou o seu Joãozinho Trinta.

É isso que no fundo o Brasil vem tentando fazer: consolidar o Mercosul, ampliá-lo ao Chile, à Bolívia, aos demais sul-americanos, ao México. Tem sido ajudado até agora pelos atrasos americanos com as eleições, com a obtenção de autorização do Congresso.

Mas nós também temos nossas mazelas, que nos entorpecem a liberdade de ação. O susto pregado no Mercosul pelas medidas para desestimular as importações é um exemplo.

Mesmo corrigido, o ”esquecimento” deve ter deixado um resíduo de dúvida: até onde estamos dispostos a ir para convencer nossos parceiros de que eles são prioritários para nós? O incidente preocupa porque o Mercosul e os outros países sul-americanos constituem os únicos mercados onde as exportações brasileiras de produtos industriais, inclusive maquinaria e material de transporte, têm crescido a mais de 10% ao ano, compensando em parte a queda de vendas aos Estados Unidos.

Em 1981, os déficits comerciais dentro da área da Aladi chegavam a US$ 2,7 bilhões, enquanto o Brasil registrava superávit de US$ 2,5 bilhões, ou seja 91% do déficit acumulado. Depois disso, a nossa abertura comercial transformou o panorama. Caso, porém, o mercado brasileiro volte a fechar-se, que argumento impediria os latino-americanos de deixarem o Brasil de lado, subordinando-o aos EUA, o principal mercado para a maioria deles? Afinal, eles também podem querer escolher um expresso mais rápido ou mais seguro.

Não é impossível tornar os vários processos de integração, inclusive a Alca, convergentes e complementares em termos de cobertura substantiva e de calendário de implementação. Para isso é essencial identificar os objetivos que o país deseja alcançar em cada nível de integração e ter clareza acerca dos instrumentos necessários.

Cada processo de integração possui certo grau de especificidade em relação aos tipos de benefícios e de custos. O do Mercosul, que já atingiu razoável intensidade, encontra-se justamente na fase em que a integração produz impacto mais forte nas estruturas de produção.

A consequência é uma crescente dependência mútua em comércio, produção e emprego, o interesse de todos pelas políticas macroeconômicas, cambiais, industriais, de investimento de cada um.

O acordo tem mostrado seu potencial para diversificar o comércio e a produção em áreas mais sofisticadas, como primeiro passo para a integração posterior no âmbito sul-americano, hemisférico ou global. Os benefícios superiores em quantidade e qualidade exigem, porém, uma contrapartida de preço: a necessidade de um tratamento preferencial aos parceiros, a disposição sincera de elaborar para o Brasil um projeto não mais confinado aos limites nacionais, mas à perspectiva ampliada do Mercosul.

O nosso expresso 2001 pode ter geometria variável para adaptar-se às especificidades e ritmos diferentes de cada processo de integração. Só não será capaz de nos levar a destinos opostos na mesma viagem.

Às vésperas da Guerra Civil espanhola comparava-se o contraditório governo republicano, que ia dos anarquistas aos conservadores, ao retrógrado comerciante catalão que, após muita resistência, decidiu-se a provar o novo trem expresso de Barcelona a Madri. Demorou-se demais na escala para o almoço e, ao voltar à plataforma, embarcou sem perceber, no trem que ia na direção oposta. Encantado com o conforto, pôs-se a elogiar o serviço com outro passageiro até que se lembrou de perguntar-lhe de onde era. Ao ouvir que o viajante era de Madri e se dirigia a Barcelona, não se conteve: – ”Veja o Senhor a maravilha do progresso moderno. Eu estou indo a Madri e o Senhor a Barcelona e estamos ambos no mesmo trem!” Como se sabe, aquele trem acabou descarrilando.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 12/04/97.