“Nunca falta a ninguém uma boa razão para se matar”, escrevia Cesare Pavese, em 1938, no seu diário “Il mestiere di vivere” (“O ofício de viver”). No domingo passado, dia 27, fez meio século que, refugiado num quarto de hotel em Turim, fiel à tradição piemontesa de não incomodar os outros, o poeta finalmente encontrava sua própria boa razão.
O suicídio de Pavese, evocado estes dias nas páginas de “La Stampa” por Norberto Bobbio, seu aluno de inglês e companheiro de juventude, converteu-o de imediato em personagem de culto, em figura emblemática da mocidade antifascista e da resistência, dos que sobreviveram à guerra para se lançar nos conflitos ideológicos da Guerra Fria.
Ele não terá sido o maior dentre os poetas italianos de período que havia já conhecido Quasimodo, Ungaretti, Eugenio Montale, Mario Luzi e logo descobriria a sombra perturbadora de Pier Paolo Pasolini. Nem o testemunho de suas narrativas seria mais eloquente do que as de Gadda, Carlo Levi, da grande Natalia Ginzburg de “Lessico Famigliare” ou, em registro diverso, de Dino Buzzati, de Giorgio Bassani, de Italo Calvino.
Impossível não aplicar a ele o que de Byron diria outro grande italiano, que viveria e morreria inédito naqueles anos em Palermo, Giuseppe Tomasi di Lampedusa. O futuro autor de “Il Gattopardo” observava que, justamente por não estar entre os deuses supremos, Byron encarnou completamente o romantismo. “Shakespeare suprema os elisabeteanos e Milton, os puritanos (enquanto), Byron é o romantismo feito homem”. Lampedusa acrescentava que, da mesma forma que Tasso e Verlaine, Byron era desses poetas cuja vida é mais importante do que a obra.
Algo parecido se poderia talvez dizer, se não da vida, ao menos da morte de Pavese. Ao escolher o momento de deixar a vida, o poeta de “Lavorare Stanca” dava autenticidade definitiva ao que não passava para outros de tema de intermináveis discussões nos cafés. Estava-se então nos anos de ouro do existencialismo, quando Camus declarava em “O Mito de Sísifo” que, no fundo, o único problema filosófico era indagar por que o homem não se suicida.
Stefan Zweig, Walter Benjamin, Joseph Roth escolheram morrer com o mundo que os nazifascistas destruíam naquele momento da guerra. Outros, terminado o conflito, não conseguiriam mais viver com seus fantasmas. Paul Celan, após compor a “Todesfugue”, decidiria uma noite afogar seu desespero nas escuras águas do Sena, ao passo que um conterrâneo de Pavese, Primo Levi, tendo sobrevivido a Auschwitz, iria, muitos anos mais tarde, mergulhar no poço do elevador de seu edifício em Turim.
Não parece ter sido esse o caso de quem, aos 41 anos, acabava de conquistar o prêmio Strega pelo livro “La Bella Estate” e dirigia uma coleção da editora Einaudi. Não lhe faltavam as desilusões amorosas, a última com uma atriz americana, mas isso não parecia motivo suficiente.
A militância antifascista motivara sua prisão, em 1935, junto com Bobbio, Einaudi, Carlo Levi, todos delatados por Pitigrilli, escritor que teve certa voga no Brasil. Menos afortunado que Bobbio, amargou como Levi a deportação interna, da qual este último traria seu “Cristo se deteve em Eboli”. Era, como muitos naquele tempo, membro do Partido Comunista, mas o partido recusara renovar-lhe a carteirinha, por suspeitar de sua heterodoxia estética.
Quem sabe o suicídio de Pavese viesse da consciência de que “mais triste do que fracassar nos seus ideais é tê-los realizado”, a sensação de nada mais ter a dizer, de querer mudar, mas suspeitar de que não seria capaz, de que, como sugeriu em “La Luna e i fal•”, não se pode voltar para trás e é impossível reviver raízes hoje mortas. Em 1950, os militantes condenaram o suicídio como deserção do dever social e ideológico. Agora que a banalidade e o oportunismo reduziram o que foi um dia o maior partido comunista do Ocidente a congressos nos quais marqueteiros americanizados adotam, em vez da foice e do martelo, o slogan “I care”, a gente se pergunta se a intuição do poeta não o poupou desse triste destino, preservando-o como o eterno adolescente e explicando por que, com mais de 4 milhões de cópias vendidas, ele é o mais lido dos italianos do após-guerra. Nunca o saberemos porque ele não deixou explicação, apenas umas linhas talvez mais irônicas do que patéticas na página de rosto do seu livro predileto, “Diálogos com Leucò”: “Perdôo a todos e a todos peço que me perdoem. Está bem assim? Não façam muita fofoca”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 03/09/2000.