Tentando fugir ao estrondo embrutecedor das toneladas de pólvora com que, a cada início de ano, refazemos o Big Bang original, descansei o coração no remanso de um texto datado, por coincidência, do 5 de janeiro em que escrevo, só que de 1964. É a alocução pronunciada pelo papa Paulo 6º em Nazaré, que surpreende pela simplicidade e pela pureza, sem nenhum traço do ranço clerical quase inseparável dos documentos do gênero.
Nazaré, para o papa, é a escola do Evangelho, onde se começa a compreender a vida de Jesus. Lá se aprende “a olhar, a escutar, a meditar e penetrar o significado profundo e misterioso dessa manifestação simples, humilde e bela do filho de Deus”.
Também se aprende o método que nos permitirá compreender quem é o Cristo. Para isso, é necessário observar o quadro de sua permanência entre nós: os lugares, os tempos, os costumes, a língua, as práticas religiosas de que se serviu Jesus a fim de revelar-se ao mundo.
Antes de partir, Paulo 6º colhe, “às pressas e quase furtivamente”, três lições de Nazaré.
A primeira, que deu título a esta coluna, é uma lição de silêncio. “Que renasça em nós a estima pelo silêncio.” Trata-se da condição indispensável do espírito para quem vive como nós, “assediados por tantos clamores, ruídos e gritos em nossa vida moderna e hipersensibilizada”.
“Silêncio de Nazaré, ensina-nos o recolhimento, a interioridade”, o valor e a necessidade das longas preparações, do estudo, da meditação, da vida pessoal e interior da oração que se faz na penumbra do quarto secreto onde apenas Deus nos faz companhia.
A segunda lição é a da vida familiar, de sua comunhão de amor, sua beleza simples e austera. Tudo isso foi resumido de forma insuperável em dois versos do Cancioneiro de Fernando Pessoa:
“Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!”.
A terceira é a lição de trabalho que emana da casa do “filho do carpinteiro” e nos ensina que a “liberdade e a nobreza do trabalho resultam, mais que do valor econômico, dos valores humanos que constituem seu fim”.
Peço desculpas se o artigo soa hoje demasiado confessional. Não é preciso pertencer a uma igreja para chegar a lições como essas. Alain, por exemplo, o mestre-filósofo da Sorbonne leiga, deixou no capítulo final de “Les Dieux”, meditação sobre as distintas ressonâncias do Natal, sobre como “nele convergem todos os mitos”. Também para ele, o Natal representa a ordem humana e o que existe de verdade na ordem política, a família na sua tríplice força de trabalho, amor e promessa, na sua encarnação da continuidade humana.
“Olhem a criança”, convida-nos Alain. “Essa fraqueza é Deus. Essa fraqueza que necessita de todos nós é Deus. Esse ser que cessaria de existir sem nossos cuidados é Deus. Tal é o espírito…”
A mãe sabe que a criança é o espírito, que ela pode falar, conhecer e reconhecer muito antes que fale, conheça ou reconheça qualquer coisa. Quanto menos prova tem a mãe, mais ela está decidida a amar, ajudar e servir. Essa verdade humana que ela carrega nos braços pode não ser nada que exista no mundo. No entanto ela está certa e o estará ainda quando cada criança provar que ela está errada. Pois há uma verdade da verdade que desafia circunstâncias fortuitas, que não tem nenhuma utilidade nem poder algum. O espírito saberá como desnudar-se de qualquer tipo de poder: é o mais alto dos reinos. E conclui Alain: “Isso foi prefigurado no Calvário de maneira tão eloquente e violenta que dispensa qualquer comentário”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 08/01/2006.