Não é o clássico dos irmãos Marx mas uma experiência insólita que acabo de viver em Hanói. Em visita ao Vietnã, fui convidado a conhecer o recém-restaurado teatro construído no início do século pelos franceses sob o modelo reduzido da Ópera parisiense. Esperava algum espetáculo tradicional ou de patriótico realismo socialista como se vê às vezes na China. Em vez disso, representava-se as “Cenas da Vida Parisiense”, de Offenbach, com elenco totalmente vietnamita.
Nada me pareceu tão chocantemente revelador deste mundo globalizado no qual o rei da Tailândia improvisa jazz ao saxofone e coreanos põem de lado seus instrumentos tradicionais para ganhar concursos internacionais tocando Tchaikovsky ao violino. Ainda assim, não estava preparado para dose tão forte. Era incongruente ver aqueles espartanos guerreiros de metro e meio de altura, vencedores de franceses e americanos, fantasiados de almofadinhas parisienses da Belle Époque ociosamente entediados com as intrigas galantes de “boulevard”. Não faltaram à opereta o apoteose do cancã final, nem esse personagem obrigatório de Offenbach, o “brasileiro” espalhafatoso e rastaquera, distribuindo dinheiro a torto e a direito, digno ancestral dos colunáveis que ainda hoje nos representam no Plaza Tenée, de Paris, ou no Plaza de Nova York.
A montagem era um projeto de cooperação franco-vietnamita e não tem importância maior. É sintomática, porém, das transformações profundas que neste país, como em toda parte, substituíram a confrontação ideológica pela paixão do desenvolvimento econômico e da imitação do Ocidente.
Trinta anos após a sangrenta ofensiva do Tet, começo do fim da guerra, que terminaria em 1975 com a queda de Saigon e a reunificação, o Vietnã só perde da China em crescimento, com taxas médias de 8,5% a 9% anuais desde 1991. De importador de arroz, passou a segundo maior exportador mundial, logo após a Tailândia _inclusive para o Brasil. Outro setor capaz de afetar interesses brasileiros é o do café, onde se tornaram os primeiros produtores de robusta.
O impressionante é que esse progresso ocorre após um dos conflitos mais devastadores e prolongados da história moderna. Após dez séculos de luta contra a dominação chinesa, o país esteve em guerra quase permanente de 1945 a 1975, primeiro contra a França, depois com os EUA. Foram mortos nesse período 2 milhões de civis e 1,35 milhão de soldados (do norte e do sul), contra cerca de 60 mil norte-americanos. Cerca de 14 milhões de toneladas de munição de todo tipo foram usados na Indochina, força explosiva correspondente a 700 vezes a bomba atômica de Hiroshima, duas vezes e meia o total de bombas aéreas da Segunda Guerra Mundial. Conforme constatou um dos balanços da Operação Rolling Thunder: “… os bombardeios destruíram virtualmente todas as instalações industriais, de transportes e comunicações construídas desde 1954, aniquilaram de 10 a 15 anos de crescimento econômico potencial”. Dizem os vietnamitas que os americanos foram generosos porque cada cidadão teve direito a 250 kg de TNT…
Duas frases de militares americanos ficaram célebres nesse tempo. A de um comandante de infantaria, que admitiu: “Tivemos de destruir a cidade a fim de salvá-la”. E a do chefe da Força Aérea, general Le May, que recomendava: “Deveríamos bombardeá-los de volta à idade da pedra”. Não obstante tudo isso, quem no final prevaleceu foram os pequenos guerreiros. Graças, é certo, ao apoio soviético, mas sobretudo à inimaginável determinação de conquistar a independência, às vezes com armas incríveis como a “caixa de vespas”, que pude ver no Museu da Guerra!
Ganhar a guerra foi, porém, mais fácil do que ganhar a paz. Mas é isso que estão fazendo agora, ajudados sobretudo por duas qualidades. A primeira é a capacidade de iniciativa, o talento inato, como o dos chineses, para o comércio e a criação de empresas. Ao lado de 2.000 joint-ventures com investimento estrangeiro e 6.000 estatais (5.000 de capital inferior a US$ 100 mil), o país já conta com 30 mil pequenas e médias empresas e _pasmem_ 1 milhão de empresas familiares! Não é difícil crer na cifra quando se vê que não há nas ruas e estradas um metro sequer sem alguma lojinha, quitanda, oficina ou restaurante de rua. As pessoas preferem dispor de só cinco metros de fachada e ter assim uma loja no térreo e residência no alto do que um terreno maior em rua secundária. O resultado é que as cidades fervilham como formigueiros, com enxames de motos, bicicletas, riquixás, carros, aparentemente sem nenhuma regra de precedência, avançando à toda, com a mão na buzina e o pé no breque. Nunca vi vitalidade igual. Às 5h estão ruidosamente jogando frescobol na rua, para desespero do embaixador da Suíça, que não consegue dormir. Às 20h, todas as lojas continuam vendendo. Para quem?, a gente se pergunta, pois são tantas que dão a impressão de só haver vendedores e nenhum comprador. Comparo com Cuba, que permitiu o turismo de massa e o uso do dólar, com todos os seus inconvenientes, mas hesita em abrir o sinal verde para as pequenas empresas pelo temor da volta do espírito burguês. Não será melhor reforçar o tecido das empresas menores a fim de enfrentar a pressão da globalização?
Herdada do confucionismo, a segunda qualidade é a veneração pelo saber e o estudo. Levaram-me a um lugar de mil anos, chamado Templo da Literatura, que é como se a Academia Brasileira de Letras se tivesse transformado numa catedral, com Machado de Assis, Drummond, Guimarães Rosa literalmente elevados ao altar onde se queima incenso e os estudantes vêm implorar ajuda nos exames. Deliciosos, às vezes herméticos, são os nomes das subdivisões do templo: Poço da Claridade Celestial, Patamar da Cristalização das Letras…
Parti de Hanói com uma convicção. Armados de tais virtudes, os herdeiros dessa tradição não haverão de fracassar no que afirmam ser sua meta principal: depois de tanta luta, convencer finalmente o mundo de que o Vietnã não é uma guerra, mas sim o nome de um pequeno país e de um grande povo.
Publicado na Folha de S. Paulo em 18/04/1998.