“Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. A fórmula de Fernando Pessoa foi criada para justificar as viagens marítimas de descobrimento. Mas será que ela vale também para outros casos?

Pena significa dor, sofrimento, esforço. A não ser que se recorra à concepção religiosa do sofrimento como valor redentor em si mesmo, é difícil abrir mão da exigência de que, entre custo e benefício, esforço e resultado, tem de haver alguma proporção.

Esse é o critério a adotar no fechamento de todo balanço histórico. Há menos de dois meses, por exemplo, passou quase em branca nuvem o 80º aniversário da Revolução Bolchevista, a maior de um século fértil em revoluções.

Em seu cenário original, as convulsões do desenlace não permitem ainda isenção ou distância para balanços. No exterior, o que mais se aproximou disso foi a polêmica na França em torno do “Livro Negro” sobre os crimes dos sistemas repressivos comunistas, de Berlim ao Camboja.

Na raiz dos crimes estaria, segundo os marxistas-leninistas, a “cultura política da guerra civil”, característica episódica, não-essencial, imposta pelas circunstâncias históricas em que se teriam dado as revoluções comunistas (insinuando-se que, fossem outras as circunstâncias, outros poderiam ter sido os rumos).

Sem entrar no exame da procedência da tese, cabe indagar por que não se insiste, tanto ou mais, em avaliar o ativo e o passivo do comunismo em função do critério que ele mesmo se propôs como fundamental. Seu objetivo era, de fato, criar um homem novo numa sociedade sem classes, pôr fim à exploração do homem pelo homem, liquidar sua alienação, possibilitando-lhe recriar-se pelo trabalho livre. Tal meta deveria encontrar expressão concreta no constante aperfeiçoamento das condições materiais e culturais da existência.

Desse ponto de vista, não foi muito o que sobrou. Com expectativa de vida de 57 anos para os homens, talvez a mais baixa da Europa, e assistindo à destruição progressiva do relativo igualitarismo e do sistema educacional, pilares da revolução, os russos não dispõem hoje de muita coisa para compensá-los do oceano de sofrimentos. Parte da liquidação dessas conquistas se deve provavelmente à maneira como se conduziu a transição ou deixou-se conduzir por ela. Não faço aqui o processo das responsabilidades. Limito-me a indagar se valeu tanto a pena, se algo ficou de positivo de sete décadas de URSS.

Do naufrágio desse tipo particular de revolução, nada seria mais desalentador do que deduzir a impossibilidade definitiva de toda e qualquer revolução, isto é, da transformação real de uma sociedade, súbita ou gradualmente, no sentido geral de uma organização mais humana, menos espoliativa e desigual, do sistema de produção e consumo.

Não sei se existe ou existiu alguma experiência autêntica que se aproximasse desse ideal. Em novembro, passei alguns dias em Cuba. Assisti ao esforço para preservar a saúde e a educação gratuitas e universais após o colapso do sistema de relações econômicas e comerciais com os países socialistas que lhe dava sustentamento. Senti nas pessoas do povo _aliás, perturbadora e maravilhosamente parecido com o nosso_ uma dignidade sem sombra de servilismo. Fruto de igualitarismo, nas relações raciais inclusive, onde somos, ao mesmo tempo, tão semelhantes na comum herança do latifúndio e da escravidão e tão contrastantes nas capacidade de superar essa herança madrasta. Mas foi visita curta demais para conclusões definitivas. E, além disso, não sei se o exemplo teria validade universal.

Estaríamos, afinal, condenados a uma espécie de maniqueísmo que nos obrigue a rejeitar no socialismo não só a banda podre da repressão e da ineficiência, mas o projeto generoso de uma economia a serviço do homem? Seria mesmo verdade imutável que crescimento e distribuição da riqueza, flexibilidade e segurança do trabalho, eficiência e proteção social têm de ser alternativas excludentes e não complementares, que a redução do desemprego só possa fazer-se à custa do aumento da desigualdade e do esmagamento dos fracos?

A consequência mais assustadora do enfraquecimento do ideal socialista foi a rapidez com que se passou a defender o indefensável: a anulação de avanços conquistados em século e meio de lutas, o retrocesso a teses e práticas do capitalismo impiedoso da Revolução Industrial. A melhor prova de que é indispensável reinventar a esquerda e o socialismo é que, diretamente ou pelo jogo dialético, eles parecem insubstituíveis como catalizadores da mudança social.

Não fosse assim, teríamos de resignar-nos à melancolia de um dos poemas de Natal de Fernando Pessoa: “Nasce um Deus. Outros morrem.
A verdade nem veio nem se foi: o erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade.
E era sempre melhor o que passou.”

Contra essa troca de um erro por outro, Vaclav Havel fez um pronunciamento notável por ocasião da demissão do governo Klaus, culpado de ultraliberalismo cego aos valores humanos e sociais. Havel denunciou então “uma visão unicamente macroeconômica do mundo” e assinalou que, “sob o pretexto de um liberalismo sem etiqueta, (…) se dissimulava paradoxalmente a teoria marxista da estrutura e da superestrutura”.

Não é só em Praga que se tenta forçar, como imposição determinada pelas novas tecnologias globalizantes da produção, uma visão macroeconômica da sociedade que estrangula e sufoca os valores humanos. Uma espécie de submarxismo às avessas. O perigo é maior em países como o nosso, onde não se completou ainda a passagem da colônia à nação mediante a incorporação das maiorias pelo consumo de massa, como se fez nos EUA e no resto do Ocidente.

É por isso que palavras e reações como as de Havel fazem crer no poeta quando nos assegura que “de tudo fica um pouco”. Esse pouco pode ser uma “apenas brasa”. À véspera de outro aniversário, desta vez dos 30 anos de Maio de 68, essa brasa vacilante nos faz rebrotar no coração cansado a esperança de que de novo seja possível aquecer-nos amanhã à chama do desejo dos que fomos jovens em 68 e para sempre seremos jovens, enquanto nos mantivermos fiéis ao ideal de “mudar de vida, de mudar a vida”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 03/01/1998.