“Olhando para o mapa, somos vizinhos de muitos países, mas vizinhos à moda da América, como dizia o Conde de Aranda no século 18, separados estes povos, uns dos outros, por desertos imensos. Só via Europa ou Estados Unidos nos comunicamos com alguns vizinhos.” O Barão do Rio Branco sabia do que falava, pois, ao nomear como representante em Caracas Manuel de Oliveira Lima, este teve de tomar um vapor para Southampton e outro dali para a Venezuela, levando cerca de cinco meses para chegar ao posto!
Hoje as ligações aéreas melhoraram as coisas, mas, se nos voltarmos para as conexões por terra, veremos que só dispomos de estradas razoáveis com o Uruguai, o Paraguai e a Argentina. Com os sete restantes de nossos vizinhos contíguos, a interconexão rodoviária ou não existe ou é precária. E mesmo essa situação sofrível data das últimas três décadas. Lembro-me bem de 1967, quando, encarregado do setor fronteiriço em Buenos Aires, acompanhei caravana exploratória de jornalistas argentinos, a fim de demonstrar-lhes os méritos da viagem rodoviária mais curta ao Brasil, via território uruguaio, pela estrada então recém-terminada de Porto Alegre a Taim e ao Chuí. Foi mais ou menos pela mesma época que as primeiras empresas de caminhão e ônibus começaram a assegurar serviço regular entre Rio, São Paulo e Buenos Aires.
Só isso bastaria para justificar a iniciativa da diplomacia brasileira de organizar reuniões de todos os chefes de Estado da América do Sul, com o objetivo, entre outros, de completar o muito que falta à integração física do território. Sem ela, nem se pode falar de integração econômica para valer. Ou melhor, pode-se apenas falar e sonhar, já que pouco de efetivo resultará, quando não existem rodovias ou ferrovias intercontinentais, pontes que enlacem rios caudalosos como o Paraná e o Uruguai, interconexões dos sistemas de comunicação, de eletricidade, gasodutos, oleodutos.
Uma das maiores fraquezas do movimento pioneiro de integração da Alalc no início dos anos 60 foi ter-se ele antecipado à criação de rede mínima de integração física. Algo sempre se logrou graças ao voluntarismo político e, em particular, aos acordos de complementação setorial muito bem aproveitados por algumas empresas transnacionais. Carecia-se, contudo, da base e substrato de sustentação de qualquer intento integracionista.
O contraste era especialmente marcante com a Europa, onde, desde a Idade Média, as economias vinham sendo crescentemente entrelaçadas por articulada malha de canais fluviais, estradas, feiras comerciais e, a partir do século 19, a mais densa rede ferroviária do mundo. Nos Estados Unidos, não foi diferente.
Os mercados regionais da Costa Leste, do Meio-Oeste e do Pacífico só se integraram para formar o fabuloso e unificado mercado norte-americano a partir do fim da Guerra da Secessão e da abertura das grandes ferrovias transcontinentais, tão glorificadas nos “westerns”, que, só de raro em raro, aludem pudicamente aos “robber barons”, os barões salteadores que muitas vezes as dirigiam.
Nada disso ocorreu na América do Sul, no Brasil, onde, até a Segunda Guerra Mundial, tinha-se de “tomar um Ita no norte” para vir morar no Rio. Quem esqueceu que a dependência da navegação de cabotagem para unir precariamente regiões brasileiras ainda longe de formar um mercado integrado está na origem dos torpedeamentos efetuados por submarinos alemães, uma das razões da entrada do Brasil no conflito? Tudo isso é de ontem ou de anteontem.
Nesse sentido, começa-se a assistir a autêntica revolução com a tardia decolagem dos projetos de integração energética entre o Brasil _país de insaciável voracidade em matéria de consumo de gás, petróleo e eletricidade_ e a Argentina, a Bolívia, a Venezuela, outros talvez no futuro, capazes de suprir-nos por meio de um sistema interconectado de gasodutos, oleodutos, linhas de transmissão a longa distância. Muitos desses projetos, sonhados por gente de visão como Eliezer Batista, podem vir a nos proporcionar o equivalente do que foi para o Mercado Comum Europeu o elo inicial da Comunidade do Carvão e do Aço. Com uma vantagem adicional em nosso caso. O Brasil sempre teve dificuldade, no passado, de encontrar o que comprar dos vizinhos, devido, em parte, à natureza quase auto-suficiente do processo nacional de desenvolvimento e, em parte, por concentrar nos países industrializados suas compras de máquinas, equipamentos e tecnologia, como é compreensível. A dependência energética, vista como fraqueza, pode, todavia, converter-se em força, fornecendo a massa crítica de importações para equilibrar mais o intercâmbio comercial e tornando o gigantesco mercado brasileiro oportunidade de crescimento para os vizinhos, como os Estados Unidos vêm fazendo em relação ao México e a inúmeros países da América Central, Caribe e Ásia.
Situei-me deliberadamente nesse terreno quase pedestre de argumentos de cimento e aço para indicar que não é preciso recorrer a fantasias geopolíticas ou temerárias especulações antiamericanas a fim de justificar plenamente a legitimidade e a oportunidade da iniciativa que tomamos. Efetivamente, o esforço de completar a infra-estrutura física de transportes, comunicações e energia tem de começar pelo mais próximo, o imediato, o espaço contíguo do território sul-americano, nossa circunstância, a condição de nossa possibilidade de ser, de existir e de crescer. E nada mais natural que o impulso parta de país como o nosso, com dez vizinhos, quase 17 mil quilômetros de fronteira terrestre, detentor de boa parte dos “desertos imensos” que hoje nos separam e um dia, graças a Deus, hão de unir-nos em verdadeira vizinhança de solidariedade e ação, de razão e coração.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 16/07/2000.