Nada nos toca mais fundo o coração do que ver outro ser humano, nosso irmão de destino e sofrimento, lutar a cada instante com forças mais desiguais para conservar a vida que se escapa. É nesse momento decisivo que melhor se sente a grandeza e a miséria do homem, presentes ao mesmo título na poesia dos salmos.

“Senhor, que é o homem, para dele assim vos lembrardes e o tratardes com tanto carinho?”, pergunta o salmo 8. “Pouco abaixo de Deus o fizestes, coroando-o de glória e esplendor.” Todavia, não muito longe, o salmo 38 lamenta: “De poucos palmos vós fizestes os meus dias; perante vós a minha vida é quase nada”. E indica em que consiste a diferença fundamental entre Deus e o homem: “O homem, mesmo em pé, é como um sopro, ele passa como a sombra que se esvai”.

Só se trata nessas passagens do homem sem mais nada, no seu essencial despojamento, naquilo que o distingue de todo o resto, sua essência humana, sem preocupar-se se é rico ou pobre, fraco ou forte, sábio ou ignorante.
Há um romance de Leonardo Sciascia, “Il Giorno della Civetta” (em português seria “O Dia da Coruja”), no qual essa essencialidade é posta em realce. Bellodi, o incorruptível capitão de carabineiros, ex-“partigiano”, que havia sabido dizer “não”

quando a maioria se curvava, cabisbaixa, ao terror nazifascista, não hesita em praticar o impensável naquela Sicília do tempo em que a Máfia era intocável. Ordena a prisão de um grande “capo”, dom Mariano Arena, por suspeita de mandante de homicídio. Apesar do antagonismo, entre os dois se estabelece uma espécie de entendimento, nascido da compreensão de que cada um, em sua esfera, é capaz de assumir o risco supremo de ir às últimas consequências.

Ao perguntarem a dom Mariano o que pensa do policial, ele responde secamente: “È un uomo”. “Um homem como?”, insistem os jornalistas. Em vão; para o velho mafioso, homem é substantivo que não necessita de adjetivos. Ou melhor, o substantivo é um adjetivo.

Mário Covas é um homem nesse sentido. Não na acepção vulgar de virilidade, valentia de enfrentar o combate de pé firme, embora seja essa também qualidade que o distingue, talvez até com exagero na imagem pública, a ponto de ofuscar outras. O que nele mais nos atinge não é o destemor diante de golpes e agressões, mas a profunda humanidade, evidente sobretudo quando ele não esconde a fragilidade em face à mão implacável da doença.

Os que o conhecem sabem que a bravura não é senão o rosto visível de outras virtudes escondidas. A solidariedade afetuosa, a disponibilidade solícita e prestimosa aos necessitados de conforto e ajuda, influentes ou insignificantes, é uma delas. Sem alarde ou interesse de proveito, pois o desprendimento, o desapego é uma segunda característica. Não só em relação ao efeito corruptor do dinheiro como ante as demais influências apodrecedoras do poder: a arrogância, a crueldade, a insensibilidade, a indiferença. Ou, em registro oposto, a subserviência, a bajulação, o servilismo perante os donos de qualquer dos instrumentos pelos quais se manipula o poder, impérios de comunicação ou partidos, bancos, plutocracias, forjadores de imagens e moedeiros falsos da opinião pública.

Por não se amoldar ou mudar de cor segundo o capricho das pesquisas, por dizer aos donos do país o que eles não gostam de ouvir, por recusar o covarde figurino de “implacável com os fracos, dócil e submisso com os poderosos”, teve de às vezes pagar o preço da derrota. Mas foram derrotas como aquela de que falou Francisco 1º ao cair prisioneiro em batalha: “Tudo ficou perdido, exceto a honra”. Não seria ele a buscar a vitória ou o êxito por meio de alianças que desvirtuam a própria autenticidade e renegam as bases populares de onde se partiu.

Autêntico, espontâneo, fiel a si mesmo são maneiras de dizer que Covas é um homem em todas as dimensões da inteireza humana, alguém a que nada falta, em outras palavras, um ser dotado de integridade. Tê-la preservado mostra que a retidão de caráter não é incompatível com a vida pública, mesmo a mofina variedade que viceja entre nós, enxovalhada periodicamente por episódios desprimorosos e aviltantes.

João Cabral dizia que o engenheiro sonha coisas claras: superfícies, um copo de água, o lápis, o desenho, o número. A essa racionalidade asséptica o governador preferiu outra virtude do engenheiro: a singeleza de maneiras, a despretensão, a modéstia de comportamento. E, como no verso do flamenco da Espanha de seus ancestrais, ele sabe que “El conocimiento la pasión no quita”.

Intensidade, paixão, entusiasmo é o que põe em tudo o que faz, dando o exemplo de que nenhum trabalho vale a pena se se faz sem amor. Encarna por isso o paradoxo de, fundador e prócer de partido caracterizado, com ou sem razão, de meia-tinta e ambivalente, sempre simbolizou o oposto da dissimulação e do fingimento, o exemplo desassombrado dos que rejeitam ficar em cima do muro.

Como na dolorosa agonia de Tancredo, a luta do governador Covas contra a enfermidade emociona profundamente a todo o povo não só porque nos lembra nossa comum mortalidade, da qual não estão isentos papas e imperadores, governadores e presidentes. Ela nos revela também como às vezes os melhores, os que mais se sacrificaram para conduzir o povo na interminável travessia do deserto, devem, como Moisés, aceitar o sacrifício final de não pisar a Terra Prometida. É uma derrota a mais. Não, porém, como a dos que dedicaram toda a vida apenas à conquista do dinheiro e do poder para descobrir a futilidade de uma acumulação que inelutavelmente termina na morte, a derrota derradeira e definitiva. Há, no entanto, muitas maneiras de perder e de morrer. A qualidade da derrota e da morte depende de como se lutou e como se viveu. De Mário Covas há de dizer o que disse Oswald de Andrade de Rui Barbosa, que ele sempre soubera morrer pelo dia seguinte do Brasil. O governador devotou sua vida à luta por uma sociedade mais equitativa, sem os véus da desigualdade que separam os homens. Aplica-se, assim, a ele o resto do poema de João Cabral:

“O engenheiro pensa o mundo justo,
Mundo que nenhum véu encobre”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 04/03/2001.