José Mindlin é homem cercado de falsa reputação. Foi com essas palavras que comecei a saudação em 23 de abril, quando Mindlin recebeu da Universidade de Brasília o título de doutor honoris causa. Quis dizer com isso que ele sofre do persistente clichê de ser tomado apenas ou sobretudo por um mecenas, um grande empresário patrono da cultura, quando a verdade é muito mais rica e complexa. Longe de ser um empresário cultural, ele é fundamentalmente um homem de cultura que as circunstâncias fizeram empresário. A substância é a vocação para a cultura; empresário é o acidente.
A leitura foi sempre para ele o tecido que une e dá continuidade à vida. Lia nos aviões, nos enguiços do trânsito, no carro, no intervalo matinal entre deixar os filhos na escola e a hora de chegar ao escritório. Quando os burocratas da Cacex, nessa mistura brasileira de arrogância e desorganização, o obrigavam a chás de cadeira intermináveis, longe de aborrecer-se, aproveitou para ler, de cabo a rabo, “A Comédia Humana”, esquecido, horas a fio, num banco de repartição que fez dele despreocupado habitante do país de Balzac.
“Não faço nada sem alegria”, é o lema do seu ex libris, tirado de Montaigne. Não só tudo faz com alegria; faz igualmente tudo bem. Com eficiência, fez o jornalista, como se diria em italiano, fez o advogado, o sócio da livraria Parthenon, o secretário estadual da Cultura e fez bem o empresário. Resume tudo em fórmula lapidar: “Nunca me tomei muito a sério, mas sempre tomo a sério o trabalho que faço, enquanto o estou fazendo”. Com os pés plantados na terra, sentido agudo da realidade, foi capaz de sobreviver galhardamente às vicissitudes empresariais brasileiras.
Há na narrativa de seus “reencontros com o tempo” ilustrações saborosas do realismo ardiloso e cheio de manhas que distingue o bibliófilo. A compra caída do céu, em Paris, por 10 mil francos, de edição original de Debret pela qual estava disposto a ir a 150 mil, o que não o impede de tentar ainda arrancar desconto do desprevenido livreiro! E a justificativa da pechincha, que não está só no prazer de pagar menos, mas na engenhosa teoria da compensação pela média: elas por elas, quanto menos se paga hoje, mais tranquilamente há de pagar amanhã o livro desejado, mas de preço exorbitante.
O realismo, a sagacidade, o espírito prático não são estorvo, ao contrário, para a plena afirmação de sua índole principal e determinante, a vocação para as coisas do espírito. Não se pode dizer que ele seja um sonhador, no sentido de desligado do mundo das aparências tangíveis. Como José na Bíblia, é, no entanto, capaz de ler os sonhos, de neles descobrir a chave para a vida acordada, de dar consistência efetiva ao devaneio, de fazer com que o sonho funcione na realidade. Foi, aliás, o que fez José no Egito, ao interpretar as apreensões inconscientes do Faraó e transformá-las em eficaz receita prática de administrador-empresário.
Pois além de criador de fabulosa biblioteca que daria vertigem a Borges, de prodigioso leitor que já leu de 7.000 a 8.000 livros e continua a ler oito em média por mês, Mindlin é, sobretudo, um criador maior de cultura, autor de iniciativas que marcaram a cultura brasileira.
Sua reverência pelos livros o fez demorar o quanto pôde o momento de escrever o seu. Mas que perfeição ele nos reservou finalmente com “Uma Vida entre Livros”! O texto prende desde a primeira linha. Antonio Candido já previne, em admirável prefácio, que o leitor vai deslizar “quase sem sentir” por páginas compostas com amenidade e alegria por quem é capaz de tarefa difícil: escrever com a naturalidade da conversa, “escrever como fala”. Logo no início o autor confessa que não gosta de ler por obrigação e não gosta de livro difícil, a não ser excepcionalmente. Por essa razão, soube escrever livro que é deleite puro, sem um bocejo ou um cochilo.
Antonio Candido comenta que ele “sabe dizer coisas justas e penetrantes sobre a função da leitura”. E conclui: “Quanto a mim, acho que nunca vi nada tão interessante nesse gênero”. A obra está animada de alegria, sentido de humor, maliciosa ironia, em estilo fluente, expressivo do que constitui a essência mais irredutível de José Mindlin: a simplicidade, a singeleza, a falta de artifício, o equilíbrio de quem vive em paz com o mundo e consigo próprio, não precisando provar nada a ninguém. Daí a ausência completa de exibição, pretensão, vaidade.
Como senso de medida e moderação em política, doutrinas e em tudo (não fosse ele discípulo de Montaigne), o autor só chega perto do exagero ao falar de sua paixão. “Gostaria de viver 300 anos, o que me permitiria ler de 25 mil a 30 mil livros. Mas, como nesse período surgiriam certamente muitos milhares de novos livros, o impasse continuaria. Cheguei à conclusão de que deveria desistir da idéia (como de fato desisti …).”
O que não o impede de querer espalhar o contágio, admitindo que só aceitou escrever sua história porque ela “poderia talvez estimular em outros o amor ao livro e, principalmente, o amor à leitura. Inocular esses vírus é, aliás, uma coisa que venho procurando fazer a vida inteira, ora com sucesso, ora sem resultado”. Nesse ponto afirma ser preciso “mostrar como a vida é melhor para quem lê do que para quem não lê”. O acento é quase religioso ou, caso se prefira, é um eco de Sócrates, da busca da sabedoria como chave para vida melhor. A vida é melhor para quem lê, explica, porque “o mundo da leitura deve ser um mundo de liberdade intelectual”. Não se poderia dizer melhor. Liberdade só existe quando se pode escolher. Por isso, o melhor fecho a este artigo é o que José Mindlin deu ao seu livro, ao dizer: “Estou terminando e, se tivesse de escolher uma coisa que desejaria que ficasse bem clara, de tudo quanto foi dito, é que, num mundo em que o livro deixasse de existir, eu não gostaria de viver”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 06/05/2001.