No meu tempo de criança, ensinavam-nos que o Brasil tirara na loteria o grande prêmio de geografia. Gigantes, ricos em recursos, não sofríamos, como outros povos menos afortunados, com terremotos, furacões ou erupções vulcânicas. Em suma, “um país abençoado por Deus e bonito por natureza”.
A história brasileira não teria ficado atrás. Independência, Abolição e República sem sangue ou quase, oásis de paz e estabilidade num oceano de vizinhos turbulentos no Império, sem revoluções sanguinárias, guerras ou ocupações estrangeiras. Povo pacífico e inteligente, num paraíso tropical, nosso atraso aparecia como aberração, fonte de intermináveis comparações com os EUA.
Saídos da adolescência, descobrimos que a geografia era ambivalente. A fertilidade da terra, de mediana a ordinária; a Amazônia, longe de poder vir a ser o celeiro do mundo; o petróleo, o carvão, o gás, escassos ou nos lugares errados; o tamanho, um problema em vez de bênção.
A crença numa história benigna tem resistido, contudo, mais bravamente. Não obstante golpes e regimes de exceção por 20 anos, torturas e desaparecimentos, massacres de meninos de rua, índios, agricultores, apesar da violência diária, tão brasileira como a broa de milho, insistimos em acalentar as ilusões.
Foi preciso chegar aos mestres modernos da interpretação do Brasil, a Caio Prado Jr., sobretudo, para reconhecer que a história brasileira é o produto de duas forças principais: o latifúndio exportador e o trabalho escravo. E que essa herança não só é tudo menos propícia como constitui, objetivamente, um “handicap” que explica muitas de nossas taras e falências.
Nada melhor para compreender isso do que ser exposto a experiências mais felizes. Foi o que me aconteceu, há um par de semanas, ao participar em Oslo do lançamento do último relatório das Nações Unidas sobre desenvolvimento humano.
A fim de demonstrar que é possível erradicar a pobreza em tempo curto, pediu-se ao professor Ottar Brox, autoridade no assunto, para explicar como a Noruega havia logrado, em 50 anos, passar de um dos mais pobres países europeus a uma das nações mais prósperas e igualitárias do mundo.
As autobiografias de noruegueses deste século partilham uma experiência comum: infância de frio, fome e privações contrastada com velhice de conforto e segurança. No espaço de uma vida humana, restavam apenas vestígios e lembranças, em 1950, da pobreza de 1900.
Como conseguir, antes de o petróleo aparecer em cena, dar a todos trabalho, salário digno, serviço médico quase gratuito?
De início, estavam já presentes, em 1900, três precondições: 1º) Não havia mais analfabetos e a educação primária era universal; 2º) o acesso aos recursos era regra e não exceção _à pesca, principal recurso do país, e, em grande parte, à terra, de escasso valor comercial no Ártico e na qual mesmo os não-proprietários tinham direito às pastagens e florestas. 3º) o uso efetivo do voto democrático e dos governos municipais para proteger os interesses de camponeses, pescadores, operários urbanos.
A combinação desses fatores deu ao país governos que não podiam ignorar as pressões da maioria. Contrariando os tecnocratas, os políticos foram forçados a priorizar não o grande capital, mas o microcrédito, o financiamento ao pequeno agricultor, ao pescador necessitado de motorizar seu barco.
Os pescadores bloquearam a tentativa de permitir que a pesca do bacalhau fosse dominada pelas companhias poderosas, obrigando-as, como alternativa, a investir na indústria de substituição de importações. O número de empregos no campo não parou de crescer. Sem êxodo rural e a consequente sobreoferta de mão-de-obra, os salários urbanos aumentaram em harmonia com os rurais. Não se admitiu que grupos estrangeiros controlassem a energia elétrica, os recursos florestais ou a pesca.
Será preciso explicitar as diferenças conosco? Vamos entrar no terceiro milênio com número substancial de analfabetos e quantidade maior ainda de gente de escassa escolaridade. O recurso mais abundante, a terra, foi, desde o início, monopolizado pelos donos de sesmarias e, mais tarde, de latifúndios. A Lei de Terras da monarquia e o que depois se seguiu têm sido uma triste crônica de açambarcamento de terras públicas pelos poderosos.
A escravidão aviltou o escravo e o dono de escravos. A relação de servilismo e o latifúndio geraram um esquema de dependência que se apropriou do voto não para romper a dominação, mas para perpetuá-la por intermédio do sistema político. Não é por outra razão que todas as legislaturas, desde 1946, contêm proporção crescente de proprietários de terra, como mostrou a pesquisa do prof. David Fleischer, da UnB.
Nossos tecnocratas serviram fielmente a esse sistema e ajudaram a criar o mecanismo de transferência que canalizou a quase totalidade dos subsídios ao grande capital e fez do governo a origem da acumulação de imensas fortunas privadas.
Não é de admirar que alguns desses economistas se empenhem em desmoralizar a reforma agrária, alegando que, no contexto de uma agricultura de alta concentração de capital e tecnologia, o acesso à terra deixou de ser importante. Esquecem que esse tipo de agribusiness foi o que despovoou o norte do Paraná, expulsou os agricultores do Sul, engrossou o exército de bóias-frias no interior de São Paulo e de marginalizados nas cidades.
Raros são os que, como Celso Furtado, valorizam o potencial significativo de oferta de empregos que o campo é ainda capaz de gerar no brasil. Pois, do contrário, de onde virão os empregos? De uma indústria que já parece ter ingressado na fase de crescimento sem gerar postos de trabalho!
Enfim, não nos faria mal um pouco de criatividade intelectual. Deixaríamos, assim, de transplantar automaticamente para a nossa realidade padrões ou sequências de desenvolvimento agrário como o dos EUA, que nada têm a ver com a experiência brasileira. Entre outras razões porque eles, ao contrário de nós, primeiro deram aos agricultores o acesso à terra, por meio do “Homestead Act” do século 19.
Infelizmente, nossa história foi, ao menos em aspectos de consequências duráveis, madrasta e mutiladora. Isso não quer dizer que estejamos condenados a repeti-la, que sejamos para sempre reféns do passado. A libertação é possível, como provaram países asiáticos de heranças piores. Mas a condição para superar o peso morto da história é a lucidez para vê-la como ela foi e continua a ser, e não como desejaríamos que tivesse sido. Só a verdade, como nos ensina o Evangelho, nos fará livres.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 21/06/97.