Tanto ou mais do que pai, afirmava o papa João 23, Deus é mãe. Ele queria dizer que ”luz inacessível” em que Deus habita e onde, abolidas as diferenças de gênero, ”seremos todos como anjos”, os valores normalmente considerados femininos terão hierarquia igual ou superior aos masculinos.

Pensei muito nisso ao ver como o mundo todo se inclinou comovidamente diante da morte de madre Teresa de Calcutá e, embora em outro nível e por razões em parte diversas, da princesa Diana, símbolo talvez mais da vulnerabilidade que se reconstrói e supera no socorro à vulnerabilidade alheia.

O amor-doação, o amor-sacrifício, a devoção sem sombra de egoísmo, a abnegação sem reciprocidade, a ternura, o carinho, a doçura na força, são algumas das pedrinhas coloridas de mosaico que, para cada um de nós, compõem a imagem da maternidade.

Perante o mistério da vida e da maternidade, a única atitude concebível é a reverência e a ação de graças. Não obstante esse consenso universal, o mais escandaloso dos paradoxos é a inexplicável desvalorização, quase desprezo, com que a sociedade encara as atividades ligadas a esses valores.

Não faz muito tempo, à véspera da conferência mundial sobre as mulheres, em Pequim, a Organização das Nações Unidas constatava o óbvio: em termos de duração horária, as mulheres trabalham muito mais e em geral mais duramente que os homens. O problema é que, como a maioria das ocupações femininas não possuem valor monetário, sua contribuição à economia é negligenciada ou simplesmente ignorada.

Se as áreas de trabalho feminino subestimadas recebessem um valor monetário, calcula-se que a contribuição das mulheres chegaria a aproximadamente US$ 11 trilhões, mais ou menos metade da atual produção mundial de bens e serviços.

É por isso que alguns setores do movimento feminista desejam que o trabalho doméstico e outras atividades não-remuneradas das mulheres sejam calculados e incluídos nas contas nacionais que medem o total da produção.

O argumento contrário é que essas contas se destinam a refletir somente o valor de mercado da produção, renda e dispêndio de um país, categorias nas quais não se incluiria o trabalho não-pago. A fim de ilustrar o problema, o economista inglês Arthur Pigou chegou a comentar que um homem pode provocar uma redução na renda nacional pelo simples ato de se casar com sua governanta, porque ela não seria mais paga pelos seus serviços!

Pondo de lado essa lógica do absurdo, a verdade é que não seria difícil tentar atribuir um valor estimativo ao trabalho feminino, da mesma forma que se calcula em alguns países o valor estimado do aluguel de uma casa ocupada pelo proprietário.

Essa discussão, porém, apenas disfarça a realidade mais grave: em toda a parte, as mulheres tendem a formar a maior proporção dos pobres e vulneráveis. Do total de 1,3 bilhão de pessoas vivendo em pobreza absoluta, por exemplo, 70% são mulheres. São elas as mais exploradas no setor informal, nas zonas de processamento de exportações, com salários às vezes 50% ou 60% inferiores aos masculinos, despedidas imediatamente ao primeiro sinal de gravidez.

De acordo com denúncia da Confederação de Sindicatos Livres, haveria países asiáticos que, a fim de atrair investimentos estrangeiros, chamam a atenção, em seus prospectos, para ”a habilidade das mãos pequeninas das mulheres orientais e sua tradicional atitude de submissão”!

No fundo, as atividades em geral associadas à mulher, não só o trabalho doméstico, mas o cuidado das crianças, dos idosos, dos enfermos, não são valorizadas nem dentro, nem fora do lar. Basta ver o que se paga às empregadas domésticas, às enfermeiras, às assistentes sociais e, entre nós, também às professoras primárias, às encarregadas de creche. São atividades desvalorizadas antes de mais nada porque a mulher não é, ela mesma, valorizada. Por último, uma sociedade deveria ser julgada pelo valor que atribui a essas ocupações, mais do que quaisquer outras as verdadeiras ”vocações do humano”, no seu sentido mais profundo.

Uma das razões da desumanização assustadora da vida nos países mais avançados é que a falta de reconhecimento social e de valorização dessas atividades vem provocando o seu desaparecimento como algo que se fazia por ato gratuito, por doação de amor. Em consequência, cada vez mais esses serviços têm de ser comprados no mercado, como já acontece, por exemplo, com as instituições para idosos, com os tristes resultados conhecidos.

É por essa razão que, apesar da admiração unânime por madre Teresa, o mundo de hoje é crescentemente incapaz de compreendê-la. A lógica do mercado e a eficácia na relação custo-benefício nada têm a ver com a loucura do amor. Em 1994, o editor da revista médica ”Lancet” escandalizou-se porque faltavam medicamentos ou não se fazia todo o medicamento possível no ”Lar dos que Vão Morrer” fundado por ela em Calcutá. No belo obituário publicado pela ”The Economist”, lembrava-se que, para madre Teresa, não era de ”coisas” que precisavam seus pacientes terminais, mas de se sentirem queridos, de terem aquilo que constitui a necessidade básica de todo ser humano. Afeto e segurança, ternura e desvelo, é o que a mãe dá a seu bebê. Foi isso, em outras palavras, que um dos seus doentes disse a madre Teresa: ”Toda a vida vivi e fui tratado como animal. Graças à senhora, sou feliz por uns momentos porque ao menos vou morrer como homem”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 04/10/1997.