Paul Valéry dizia que ”tudo que é simples é falso”. A fórmula soa um tanto categórica e não se aplica, é claro, à simplicidade como virtude evangélica. O que o poeta-filósofo queria dizer era que a simplificação artificial de uma realidade diversa e contraditória levava sempre a resultados enganadores.
Penso nisso ao continuar o diálogo com a leitora que me escreveu, Beth Viviani, e, por meio dela e da Folha, com todos que lêem estes artigos.
Queixava-se ela de um comentário em outro artigo, no qual o autor desdenhava as propostas de Jospin como condenadas a produzir mais desemprego na França. Tal julgamento representa bem a opinião dos economistas majoritários e da imprensa internacional moldada pelos órgãos americanos e ingleses.
Por trás desse juízo está a convicção de que a economia francesa, de forte presença do governo e com normas legais para limitar o poder de demitir trabalhadores, seria incapaz de reduzir o desemprego. A situação ficaria ainda pior se os socialistas tentassem implementar a idéia de diminuir as horas de trabalho sem tocar nos salários.
Há obviamente elementos de verdade nessa posição. O problema é que esses elementos constituem apenas parte incompleta de uma realidade muito mais complicada. O desemprego nas sociedades industriais e, em particular, na Europa tem causas diversas que exigem remédios diversificados. Quando a causa é a mudança tecnológica, por exemplo, o treinamento de mão-de-obra qualificada é a terapêutica aconselhável. No entanto, isso de pouco servirá se, como no caso europeu, um dos motivos principais da desocupação é o crescimento econômico frouxo e vagaroso. A prova é que, nessas economias, têm aumentado não só o número dos desempregados sem qualificação como também o dos qualificados, inclusive com formação universitária e técnica.
Vejo isso não só pelas estatísticas, mas pela experiência pessoal. Os amigos de uma de minhas filhas, recém-formados no Politécnico de Lausanne, escola líder em tecnologia de ponta, enfrentam as maiores dificuldades para encontrar emprego, ao contrário do que ocorria até cinco anos atrás. Nesse caso, a flexibilidade do mercado de trabalho nada tem a ver com a questão, pois a Suíça sempre foi um país de legislação neoliberal. Acontece que a economia aqui sofre os efeitos do crescimento arrastado que se registra na França, Alemanha e Itália, em boa parte devido à prioridade atribuída por esses países às metas de Maastricht sobre a moeda única, em detrimento da expansão econômica.
Certamente é desejável, na França como no Brasil, flexibilizar mais o mercado de trabalho, facilitar o tempo parcial. Esses objetivos não devem, contudo, virar tabu absoluto, mas necessitam ser conciliados com valores de igual ou maior hierarquia e levar em conta outros aspectos.
Comecemos por esses últimos. A flexibilidade sempre existiu nos Estados Unidos, mas não impediu, no passado, que esse país conhecesse taxas de desemprego altas e persistentes. Em contraste, o Japão, país do emprego vitalício por excelência, foi até pouco a nação industrializada com menor desemprego e ainda exibe taxa inferior à americana.
Quanto aos valores, é preciso não esquecer que as leis de proteção ao emprego e ao trabalhador foram conquistas históricas contra a selvageria do capitalismo da Revolução Industrial. Reconheceu-se em toda parte, inclusive na Corte Suprema americana, que a lei deveria equilibrar a capacidade desigual de barganha das partes do contrato de trabalho, dando ao empregado proteção que compensasse sua dependência na relação do emprego. Do contrário, teríamos de aceitar que existe igualdade de tratamento a ricos e pobres porque uns e outros podem hospedar-se em hotéis de luxo em lugar de dormir sob as pontes!
Liberdade absoluta de contrato é coisa que não existe em país nenhum. Já não se pode mais vender e comprar seres humanos, como por muito tempo se fez no Brasil, nem se deveria poder comprar votos no Congresso, como aparentemente se faz ainda em alguns países. Tampouco é permitido transacionar sobre o limite de oito horas de trabalho diário, o salário mínimo ou as regras de segurança no trabalho. O filósofo americano Michael Walzer, no livro ”Spheres of Justice”, chama esses contratos proibidos de ”transações bloqueadas”.
Ora, o que desejam os advogados de uma flexibilização extrema que volte a admitir transações que o progresso histórico justificadamente eliminou? Retornar aos tempos de David Copperfield, das 14 ou mais horas de trabalho por dia, da saudável instituição da prisão por dívidas? Onde e por que traçar o limite? Deveríamos, por exemplo, para poder competir com o chinês, que, conforme a sabedoria do Carnaval, ”só come uma vez por mês”, fazer o mesmo nós também?
Diante de tais conselhos, convém desconfiar. ”Se o trabalho duro e o salário baixo fizessem tão bem ao caráter e à alma como se afirma”, comentava um antigo sindicalista americano, ”há muito tempo os ricos o teriam monopolizado e não teriam deixado nem um pouco para nós…”.